(Texto a respeito da produção do jogo "Corrida Eleitoral" e algumas implicações)
Endereço do jogo: http://corridaeleitoral.tripod.com/
Por Gustavo de Castro Linzmayer
Vejo os jogos interativos como um grande campo de novas possibilidades de poesia e crítica. Em um tempo em que a linguagem, os signos, as estruturas simbólicas, as palavras se tornaram tão banalizadas a ponto de todo discurso revolucionário ser tido como "repetição", "fase da vida", "rebeldia adolescente" ou mesmo ter se tornado produto de consumo e alienação, a linguagem computacional, algoritímica, abre grandes possibilidades de criação de ambientes de imersão inteligíveis através de combinações de comandos lógicos, podendo ser ferramenta de exploração de usos novos da linguagem. Além disso, o meio digital é um campo onde se explicita a divisão de clases na sociedade, que tem sido camuflada de todos os modos: poucos são os que falam a língua digital, a língua das máquinas. Um grande exemplo disso são os chamados "Centros de Inclusão Digital", centros de aprendizados de informática financiados pela iniciativa privada. Esses centros, que procuram buscar a adesão e a simpatia das classes excluídas, mascaram seus interesses sob o pretexto de iniciativas de caridade, de um interesse dos empresários na educação dos trabalhadores. Na verdade, esses centros possuem administração e hierarquia rigorosamente vinculadas aos reais interesses da burguesia. Neles a informática é posta e ensinada apenas como uma ferramenta de utilidade prática do trabalho, ou seja, algo que torna a produção mais eficiente e lucrativa para o burguês. Jamais como uma nova possibilidade de intercâmbio alternativo de informações ou mesmo um campo de novas criações. Nada muito diferente de um trabalhador que recebe instruções para aprender a operar uma máquina ou a varrer um chão, só que em uma versão high-tech, e, assustadoramente, não no ambiente de trabalho, mas no próprio bairro, invadindo assim, o tempo livre do trabalhador para explora-lo melhor, sob o disfarce da caridade. O próprio nome "Centro de Inclusão Digital" já deixa subentendida uma divisão de classes: existem incluídos e excluídos. Obviamente, os incluídos são os bondosos burgueses que tem a missão divina de incluírem os pobres diabos. Mesmo assim, vejo que esses centros deixam brechas, tornando-se assim um espaço interessante para a proliferação de novas iniciativas. Uma vez que não há um controle total sobre as operações do usuário, que, acaba encontrando pequenos espaços de liberdade na sua navegação, abrindo e fechando janelas durante as aulas, aproveitando os tempos extras, etc.
No texto "Cinema: Instrumento de Poesia", Luis Buñuel enuncia as similaridades do mecanismo pela qual a linguagem cinematográfica se assimila com o subconsciente humano. Elementos como os deslocamentos rápidos temporais e espaciais, a capacidade de se enfatizar um determinado objeto pelo close-up, recortando-o do ambiente, criando uma fragmentação espaço-temporal, são alguns exemplos de como o ecritor e cineasta defendia um cinema que fosse capaz de explorar o mundo dos desejos, do universo insólito e desconhecido do ser humano. Similarmente, aqui, farei uma tentativa de sugerir alguns elementos próprios da computação que tornam os jogos poéticos. A linguagem dos jogos computacionais, tem muita poesia. Mas, da mesma forma que o cinema em sua gênese demorou para ser assimilado como meio de criação de arte, os jogos passam por um processo similar... Nem todo filme é artístico, muito menos todo jogo... É necessário que existam elementos coerentes nesse sentido no processo de criação do trabalho. Os jogos, por exemplo, colocam a eternidade do poeta em um patamar tangível: não mais se trata de um idealismo do poeta romântico que, desajustado, afasta-se da sociedade e, alienando-se do processo de produção social, acaba por fortalecer os meios simbólicos da propriedade privada. Agora tratam-se do comando "while", um dos princípios básicos da programação. Um "while" é um comando que torna capaz a repetição indeterminada de outros determinados comandos, até que se cumpra uma condição que interrompa o ciclo. Mas é possível que essa condição não se interrompa nunca e até criar mecanismos para que, intencionalmente, essa condição se torne absurda, impossível. Trata-se de um infinito indeterminado, existencial, não de um infinito idealizado. Essa questão do infinito advém de conversas com um grande gênio, artista, programador e pensador da arte nos jogos, chamado André Zangari, também ativo nas produções independentes. Outro elemento interessante é a questão da aleatoriedade, do poder de gerar, dentro de certos limites, um grau alto de indeterminação dos elementos dentro de um mesmo programa, o que faz com que você nunca jogue o mesmo jogo duas vezes. Combinando esses dois elementos, o while e a aleatoriedade, é possível criar ciclos infinitos que não sejam simplesmete repetições estáticas viciosas, que perde o sentido com o tempo, ou que percam-se em si mesmos, mas uma ferramente de geração de labirintos infinitos com elementos sempre novos.
Outra questão é a necessidade de escolha do usuário: é impossível avançar, superar certos estágios de um jogo como um mero espectador de cinema: sempre existem encruzilhadas que dependerão das escolhas racionais do jogador, o que o torna muito mais responsável pelo ambiente no qual imerge. Aliás, a escolha é possível por conta de um outro elemento básico da programação: as condicionais, geralmente utilizadas pelo comando "if", que permite que determinados blocos de comandos sejam executados e outros não dependendo das condições de itens variáveis na excecução do programa. Esses mecanismos podem ser utilizados muito bem em função da alienação, de criação de realidades separadas do processo produtivo real que tem por função complementar o prazer que o trabalhador, o excluído não consegue alcançar na sua vida cotidiana. Assim, através dessas reflexões, no jogo que eu produzi, o jogador é colocado na posição de um candidato a presidência. Dessa forma, a linguagem computacional é utilizada para expor mecanismos de poder real. Na medida em que o partido do candidato anuncia uma política nova e, no decorrer do jogo, o usuário, por sua própria escolha e responsabilidade é levado a tomar decisões que contrariam o discurso adotado, com o único fim de vencer, por alguns instantes é possível refletir sobre as contradições dos reais interesses aos quais os partidos servem e o discurso adotado. Por mais bem intencionado que o jogador possa ser, ele é dependente de uma estrutura de poder que exige mudanças de programas, falsificação ideológica e corrupções para ser eleito. E é precisamente a utilização desses artifícios que levam um candidato a se eleger.
“Corrida Eleitoral” não é o primeiro jogo nesse sentido. Existe o McDonald's video-game, no qual o jogador é colocado na posição de um dono de franquia da rede:
http://www.mcvideogame.com/
Existe o Faith Fighter, um jogo de luta entre várias divindades populares em culturas diferentes e, onde o jogador experimenta, por alguns instantes, controlar os deuses, ao invés de ser controlado por eles:
http://www.molleindustria.org/faith-fighter
E existe um jogo, Hustler, no qual baseei a engine do que eu produzi onde o objetivo é fazer o maior lucro possível em 90 dias de tráfico de drogas:
http://www.newgrounds.com/portal/view/341675#
A favor da produção independente dos jogos: baixo custo, utilização de recursos próprios, formação de equipes pequenas em torno de interesses comuns pela arte. A produção diletante de arte pode requisitar um esforço muito grande para a concretização dos programas e, ainda, com a falta de grandes recursos comparados aos recursos das grandes empresas produtoras. Porém, para compensar essa falta, o artista deverá fazer um esforço no sentido do aproveitamento das possibilidades da linguagem, que tornem o jogo interessante e, da subjetividade, da criação de estilos próprios que permitam que as limitações técnicas de gráficos e sons sejam compensados por uma diferenciação do estilo. Para levantar recursos e tempo livre, os artistas, provavelmente, encontrarão grandes obstáculos. Porém, desse esforço, decorrerá que não se trata de uma arte banalizada e comercializada, engrandecendo os significados. Temos no Brasil, no cinema, o exemplo do Cinema Novo, dos anos 60 e 70. Nessa época, era notável a disparidade entre os recursos técnicos norte-americanos e europeus e os dos países do chamado terceiro mundo. Não havendo possibilidades de se criar um cinema nos moldes norte-americanos por conta das limitações técnicas e financeiras, os cineastas brasileiros, destaque-se Glauber Rocha, optaram por um aprofundamento nas questões sociais e alegorias políticas a respeito e mais de acordo com o contexto e sentimentos locais. Essa experiência, é, sem dúvida, uma rica fonte de sugestões para as produções independentes da nova arte digital.