domingo, 25 de outubro de 2009

Aforismo 001

no mundo temos flores e feras. beleza e destruição. nascimento e morte. porém ele não é esses opostos, e nem sequer eles são opostos. nós apenas os percebemos assim. toda destruição possui em si um devir-beleza, um devir-criação, a morte um devir-nascimento. olhando mais de perto podemos ver que são apenas manifestações diferentes da mesma realidade poliédrica da Trama, poliedricamente irregular, nunca opondo uma face a outra. ou olhando de outro jeito, essas faces nem sequer o são. o ser supõe uma negação, e é isso que cria a ilusão binária. se dissolver o conceito artificial de Ser, de Objeto, revela-se a Potência, que não é una nem plural, pois não é quantificável. somos nós que, com a ilusão do Ser e da busca da Essência, lhe damos forma e número e CPF. lha damos um nome, um rótulo, uma definição. recortamos a realidade e a fragmentamos.


ao dizer que algo nasce, atribuimos a um devir uma existência objetiva, a recortamos de todo o restante da realidade e negamos a existência de outros devires contraditórios. o mesmo ao dizer que algo morre. a morte e o nascimento não são substantivos, não possuem em si substância, fora de nosso próprio mapa de realidade. somos nós que lhes atribuimos sua substância fantasmagórica, "A Morte", "O Nascimento", memes, grades de janelas. as percepções humanas inventam a dualidade, mas o mundo tampouco é uno. a própria unidade é fruto de nosso quantificar. a realidade não possui quantidade, não sendo substância, não possui adjetivo.


então o leitor pensa "mas eu sou! eu estou lendo este texto, portanto eu existo, o que eu experencio é real". pois sim. você é real, eu sou real, este texto é real. mas não por si próprios, porém apenas em experiência. quando a experiência cessa, cessa a realidade. a memória é uma continuação da experiência. sonhos são reais, eles acontecem.


distinção entre material e ideal não faz sentido neste mapa de realidade. alguns dizem que o material, o concreto, é que define a consciência. mas o que é o concreto, pergunto-lhes eu. seria o concreto a economia, como dizem? como eu gostaria de chutar a cotação do dólar! ou seria o concreto a fome, a dor, as sensasões físicas? mas sensações não são produto da mente, relações abstratas? e pensamentos abstratos não se expressam em mudanças concretas na realidade, não são eles próprios também reações químicas e biológicas? onde, no fim das contas, está a oposição entre abstrato e concreto? uma coisa está tão imbricada na outra que querer separá-los e opô-los gera o sentimento de falta que marca nossa civilização. dividimos o mundo e tentamos viver o dia-a-dia em metade dele e buscamos a outra metade em religiões e prazeres e entretenimento.


mas não se trata simplesmente de negar a dualidade em favor de uma unidade essencial de todas as coisas. sendo aí a própria negação o gérmen de nova dualidade, a afirmação de uma verdade superior. dissolvo a dualidade em favor do nulo. no nada não há negação, nem afirmação, apenas há. o nada não é ausência de algo, nem o contrário. é a totalidade da existência, o saldo de todas as equações. não há verdade, pois esta é mais uma relação de sentido, e a realidade não tem sentido.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Reflexões sobre a Alteridade

Lênon Kramer

(texto para trabalho de antropologia)


Para falar sobre o Outro precisamos primeiro entender o que seja o Eu, uma vez que aquele só obtém sentido quando comparado a este. O Eu, identidade primária de um ser senciente, a auto-consciência, é a negação de tudo que esteja lá fora, sendo tudo aquilo que está fora do conjunto do que não-se-é. Ou seja, o conceito de Eu só se torna possível através de um contraste com o Outro.

Assim, temos que essa divisão Eu-Outro é uma coisa arbitrária e muitas vezes irrelevante para o Outro-Lá-Fora, apesar de ser de suma importância para o Eu-Aqui-Dentro, que necessita disso para se afirmar enquanto consciência existente e atuante. “Somente do meu ponto de vista, no qual todos estão e só eu estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim” [1].

Talvez esta seja a origem da atitude que Lévi-Strauss [2] considera como a mais antiga e primária ao se encontrar uma cultura diferente: a de repúdio. Sendo o Eu em princípio uma negação do Outro, a postura psicológica básica é a de negação: eu não sou como eles, e se os costumes deles não são iguais aos meus, devem ser bárbaros e selvagens, uma vez que eu sou um Homem.

Ainda Lévi-Strauss [3] chama a atenção para o fato de que a maioria das culturas se autodesignam com um epíteto que pode ser traduzido por “Os Homens”, enquanto que para as tribos vizinhas reservam epítetos como “maus”, “malvados”, “macacos da terra”, “ovos de piolhos” ou até mesmo “fantasmas” ou “aparições”.

Isso talvez seja uma necessidade do Eu de se afirmar, de se identificar em contraste ao Outro, que, não podendo ser igual (o que desidentificaria o Eu), deve ser necessariamente inferior.

E assim, através desse jogo de identificações, epítetos e diferenciações que a humanidade foi tomando forma. E essa forma definitivamente não é homogênea, como suporiam alguns teóricos, mas completamente heterogênea e diversificada.

Há aí um jogo duplo entre o Eu e o Outro. Pois ao mesmo tempo que há uma tendência a grupos próximos fisicamente se afastarem culturalmente (buscando assim uma identificação pelo contraste), há também uma tendência oposta de se aproximarem culturalmente (buscando assim a interação, ou talvez mesmo como fruto desta). Esse jogo se forma em contrastes e reflexos, trocas e cópias.

Assim a formação de pensamento nas mais diversas culturas não é igual, e nem mesmo semelhante. Cada uma tem seu próprio ethos, que não pode ser desconsiderado ao se fazer uma análise etnográfica.

Não se pode pressupor, como fez Obeyesekere – segundo Sahlins [4] –, que todos os humanos possuem uma mesma racionalidade, uma mesma propensão a seguir a lógica aristotélica-cartesiana ocidental. Cada população específica encara a realidade de sua forma específica, seu próprio túnel-realidade.

Cada cultura é única em sua especificidade. Culturas podem ser misturadas, criadas, modificadas, destruídas... mas serão sempre diferentes entre si e cada uma carregará seus próprios pressupostos e sua própria lógica.

Encontros entre culturas diferentes costumam ser sangrentos, por conta desse instinto de negação. Geralmente ou as duas culturas se misturam ou uma se sobrepõe à outra. Mas nunca saem incólumes.

O ocidente ganhou preponderância cultural nos últimos dois séculos por conta de seu desenvolvimento tecnológico, fruto de sua obsessão por “aumentar continuamente a energia disponível per capita[5]. Assim os ocidentais ganharam a possibilidade de levar (forçar) sua cultura a todos os quatro cantos da terra, sem grande chance de resistência dos demais povos, que até então estavam preocupados com outros tipos de coisas, como desenvolver suas relações de etiqueta, ou seu conhecimento do corpo e da mente humanos, ou qualquer outra coisa.

A aparente vitória do ocidente sobre o resto do mundo se deve menos a sua “superioridade” efetiva do que seu foco de interesse comparado com o de outros povos.

Porém essa globalização teve efeitos colaterais além da ocidentalização[6]: aumentou a chance de as demais culturas se moverem pelo globo. Hoje um dos principais elementos culturais do ocidente, o rock ‘n’ roll não é de origem européia, mas sim africana, assim como o blues, o jazz, apenas para citar alguns dos mais internacionalmente populares.

Hoje com a internet nós temos a possibilidade inclusive de constituição de culturas não-localizadas espacialmente. As chamadas sub-culturas ou tribos urbanas surgem, crescem e desaparecem a cada instante, carregando consigo ethos, morais, costumes e crenças próprias e específicas. Isto talvez seja uma resposta ao problema colocado por Lévi-Strauss[7], afastamentos diferenciais no jogo cultural que barrem a homogeneidade e evitem um enfraquecimento do progresso.



[1] TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América, a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3

[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 333

[3] ibid. p. 334

[4] SAHLINS, Marshall. “Introdução”. In Sahlins, Marshall. Como pensam os nativos: Sobre o Capitão Cook, por exemplo. São Paulo: Edusp, 2001

[5] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 351

[6] há inclusive controvérsias em relação à realidade da tal ocidentalização e qual seu verdadeiro alcance. Movimentos de relocalização cultural existem por todos os lugares.

[7] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 363

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Sociedade Acéfala

Texto do meu pai

KRAMER, Ernesto: "Introdução ao Pensamento Social", 2001, Edições Eletrônicas Universo Separado.

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A idéia é que cada e todo tipo de grupo que com-põe a comunidade política é autônomo e indepen-dente, sendo garantido o respeito dos indivíduos pelos direitos dos outros.

As rixas entre os humanos têm sido solucionadas pelas formas adotadas para garantir esses direitos.

Diferentes formas de admissão fazem os critérios para a distribuição das funções políticas.

As pessoas, organizadas em conjuntos ou associações com filiação voluntária, compartilham entre si os serviços públicos. A autoridade para a distribuição destes trabalhos entre os diferentes conjuntos, que poderíamos também chamar de Comitês ou Comissões, e a convocação para realizá-los, é dada a assembléias populares.

A entrega de tarefas específicas a indivíduos responsáveis, a comissões ou comitês, depende da envergadura e/ou complexidade do trabalho precisado pela comunidade.

Responsáveis pela direção e execução de tarefas pontuais são nomeados pela livre escolha de seus companheiros e confirmados pela assembléia. Esta última também os controla, cobra deles a efetiva-ção dos encargos, e os controla diretamente ou por meio de pessoas designadas especificamente para esta tarefa.

Os litígios seriam solucionados por acordos. Es-tes poderiam ser supervisionados por um Conselho, nos casos que tivessem solução mais dificultosa.

Diferentes tipos de conselhos podem coexistir, para debater questões de interesse público, ações de indivíduos que infringem regulações sociais [leis] estabelecidas, desrespeitem direitos ou não cumpram obrigações reconhecidas.

Critérios para distribuir funções políticas, para organizar a vida pública, são de exclusiva responsabilidade do ‘todo social’, o qual se expressa por meio de assembléias populares. Pelo tanto, estes critérios são considerados mutáveis; podem mudar segundo o interesse social, mas não por in-teresses individuais ou de grupos minoritários.

Membros de Conselhos são escolhidos por qualida-des de sabedoria e habilidade de negociação, mas não contam com autoridade para dar decisão obri-gatória em questões de litígio.

Porta-vozes dos diferentes conjuntos, escolhidos pelos membros dos conjuntos como seus represen-tantes, desempenham papel importante nos debates. Embora suas opiniões tenham importância no ‘teatro social’, o cargo não confere qualquer autoridade nem privilégio ao seu ocupante. Elas são pessoas que seriam consideradas obrigadas a participar de qualquer debate público, quer que o assunto lhes seja de particular interesse ou não.

Os porta-vozes teriam também a obrigação recíproca de informar a seus representados sobre os as-suntos tratados nas reuniões nas que participarem.

Manifesto da Produção Independe de Jogos Interativos e Poesia

(Texto a respeito da produção do jogo "Corrida Eleitoral" e algumas implicações)

Endereço do jogo: http://corridaeleitoral.tripod.com/

Por Gustavo de Castro Linzmayer


Vejo os jogos interativos como um grande campo de novas possibilidades de poesia e crítica. Em um tempo em que a linguagem, os signos, as estruturas simbólicas, as palavras se tornaram tão banalizadas a ponto de todo discurso revolucionário ser tido como "repetição", "fase da vida", "rebeldia adolescente" ou mesmo ter se tornado produto de consumo e alienação, a linguagem computacional, algoritímica, abre grandes possibilidades de criação de ambientes de imersão inteligíveis através de combinações de comandos lógicos, podendo ser ferramenta de exploração de usos novos da linguagem. Além disso, o meio digital é um campo onde se explicita a divisão de clases na sociedade, que tem sido camuflada de todos os modos: poucos são os que falam a língua digital, a língua das máquinas. Um grande exemplo disso são os chamados "Centros de Inclusão Digital", centros de aprendizados de informática financiados pela iniciativa privada. Esses centros, que procuram buscar a adesão e a simpatia das classes excluídas, mascaram seus interesses sob o pretexto de iniciativas de caridade, de um interesse dos empresários na educação dos trabalhadores. Na verdade, esses centros possuem administração e hierarquia rigorosamente vinculadas aos reais interesses da burguesia. Neles a informática é posta e ensinada apenas como uma ferramenta de utilidade prática do trabalho, ou seja, algo que torna a produção mais eficiente e lucrativa para o burguês. Jamais como uma nova possibilidade de intercâmbio alternativo de informações ou mesmo um campo de novas criações. Nada muito diferente de um trabalhador que recebe instruções para aprender a operar uma máquina ou a varrer um chão, só que em uma versão high-tech, e, assustadoramente, não no ambiente de trabalho, mas no próprio bairro, invadindo assim, o tempo livre do trabalhador para explora-lo melhor, sob o disfarce da caridade. O próprio nome "Centro de Inclusão Digital" já deixa subentendida uma divisão de classes: existem incluídos e excluídos. Obviamente, os incluídos são os bondosos burgueses que tem a missão divina de incluírem os pobres diabos. Mesmo assim, vejo que esses centros deixam brechas, tornando-se assim um espaço interessante para a proliferação de novas iniciativas. Uma vez que não há um controle total sobre as operações do usuário, que, acaba encontrando pequenos espaços de liberdade na sua navegação, abrindo e fechando janelas durante as aulas, aproveitando os tempos extras, etc.

No texto "Cinema: Instrumento de Poesia", Luis Buñuel enuncia as similaridades do mecanismo pela qual a linguagem cinematográfica se assimila com o subconsciente humano. Elementos como os deslocamentos rápidos temporais e espaciais, a capacidade de se enfatizar um determinado objeto pelo close-up, recortando-o do ambiente, criando uma fragmentação espaço-temporal, são alguns exemplos de como o ecritor e cineasta defendia um cinema que fosse capaz de explorar o mundo dos desejos, do universo insólito e desconhecido do ser humano. Similarmente, aqui, farei uma tentativa de sugerir alguns elementos próprios da computação que tornam os jogos poéticos. A linguagem dos jogos computacionais, tem muita poesia. Mas, da mesma forma que o cinema em sua gênese demorou para ser assimilado como meio de criação de arte, os jogos passam por um processo similar... Nem todo filme é artístico, muito menos todo jogo... É necessário que existam elementos coerentes nesse sentido no processo de criação do trabalho. Os jogos, por exemplo, colocam a eternidade do poeta em um patamar tangível: não mais se trata de um idealismo do poeta romântico que, desajustado, afasta-se da sociedade e, alienando-se do processo de produção social, acaba por fortalecer os meios simbólicos da propriedade privada. Agora tratam-se do comando "while", um dos princípios básicos da programação. Um "while" é um comando que torna capaz a repetição indeterminada de outros determinados comandos, até que se cumpra uma condição que interrompa o ciclo. Mas é possível que essa condição não se interrompa nunca e até criar mecanismos para que, intencionalmente, essa condição se torne absurda, impossível. Trata-se de um infinito indeterminado, existencial, não de um infinito idealizado. Essa questão do infinito advém de conversas com um grande gênio, artista, programador e pensador da arte nos jogos, chamado André Zangari, também ativo nas produções independentes. Outro elemento interessante é a questão da aleatoriedade, do poder de gerar, dentro de certos limites, um grau alto de indeterminação dos elementos dentro de um mesmo programa, o que faz com que você nunca jogue o mesmo jogo duas vezes. Combinando esses dois elementos, o while e a aleatoriedade, é possível criar ciclos infinitos que não sejam simplesmete repetições estáticas viciosas, que perde o sentido com o tempo, ou que percam-se em si mesmos, mas uma ferramente de geração de labirintos infinitos com elementos sempre novos.

Outra questão é a necessidade de escolha do usuário: é impossível avançar, superar certos estágios de um jogo como um mero espectador de cinema: sempre existem encruzilhadas que dependerão das escolhas racionais do jogador, o que o torna muito mais responsável pelo ambiente no qual imerge. Aliás, a escolha é possível por conta de um outro elemento básico da programação: as condicionais, geralmente utilizadas pelo comando "if", que permite que determinados blocos de comandos sejam executados e outros não dependendo das condições de itens variáveis na excecução do programa. Esses mecanismos podem ser utilizados muito bem em função da alienação, de criação de realidades separadas do processo produtivo real que tem por função complementar o prazer que o trabalhador, o excluído não consegue alcançar na sua vida cotidiana. Assim, através dessas reflexões, no jogo que eu produzi, o jogador é colocado na posição de um candidato a presidência. Dessa forma, a linguagem computacional é utilizada para expor mecanismos de poder real. Na medida em que o partido do candidato anuncia uma política nova e, no decorrer do jogo, o usuário, por sua própria escolha e responsabilidade é levado a tomar decisões que contrariam o discurso adotado, com o único fim de vencer, por alguns instantes é possível refletir sobre as contradições dos reais interesses aos quais os partidos servem e o discurso adotado. Por mais bem intencionado que o jogador possa ser, ele é dependente de uma estrutura de poder que exige mudanças de programas, falsificação ideológica e corrupções para ser eleito. E é precisamente a utilização desses artifícios que levam um candidato a se eleger.

“Corrida Eleitoral” não é o primeiro jogo nesse sentido. Existe o McDonald's video-game, no qual o jogador é colocado na posição de um dono de franquia da rede:

http://www.mcvideogame.com/

Existe o Faith Fighter, um jogo de luta entre várias divindades populares em culturas diferentes e, onde o jogador experimenta, por alguns instantes, controlar os deuses, ao invés de ser controlado por eles:

http://www.molleindustria.org/faith-fighter

E existe um jogo, Hustler, no qual baseei a engine do que eu produzi onde o objetivo é fazer o maior lucro possível em 90 dias de tráfico de drogas:

http://www.newgrounds.com/portal/view/341675#

A favor da produção independente dos jogos: baixo custo, utilização de recursos próprios, formação de equipes pequenas em torno de interesses comuns pela arte. A produção diletante de arte pode requisitar um esforço muito grande para a concretização dos programas e, ainda, com a falta de grandes recursos comparados aos recursos das grandes empresas produtoras. Porém, para compensar essa falta, o artista deverá fazer um esforço no sentido do aproveitamento das possibilidades da linguagem, que tornem o jogo interessante e, da subjetividade, da criação de estilos próprios que permitam que as limitações técnicas de gráficos e sons sejam compensados por uma diferenciação do estilo. Para levantar recursos e tempo livre, os artistas, provavelmente, encontrarão grandes obstáculos. Porém, desse esforço, decorrerá que não se trata de uma arte banalizada e comercializada, engrandecendo os significados. Temos no Brasil, no cinema, o exemplo do Cinema Novo, dos anos 60 e 70. Nessa época, era notável a disparidade entre os recursos técnicos norte-americanos e europeus e os dos países do chamado terceiro mundo. Não havendo possibilidades de se criar um cinema nos moldes norte-americanos por conta das limitações técnicas e financeiras, os cineastas brasileiros, destaque-se Glauber Rocha, optaram por um aprofundamento nas questões sociais e alegorias políticas a respeito e mais de acordo com o contexto e sentimentos locais. Essa experiência, é, sem dúvida, uma rica fonte de sugestões para as produções independentes da nova arte digital.


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Caso o Zé Ninguém não tenha ouvido direito

PEREIRA, Iago in "Dreaming's Mystery Lane"
www.mysterylane.blogger.com.br


"(...) Vou descrever aqui o comportamento sexual praticado por grupos de Homo Sapiens que sofrem de uma gravíssima doença emocional - a normopatia. Entre estes grupos, os machos são detentores de um status incontesto - sujeito neutro de enunciação, tomador de decisões e provedor financeiro. As fêmeas costumam desfrutar de um período relativamente liberal entre o fim de suas adolescências e o começo de suas vidas adultas. Neste período, os machos buscam o intercurso com o maior número de fêmeas possível - o que, feito com sucesso, lhes rende status tanto entre machos quanto entre fêmeas. Para os machos, é importante que este intercurso não seja seguido de uma relação posterior - o que é visto como perda da liberdade, enredamento. As fêmeas perdem status às vistas do grupo quando praticam intercurso com os machos; portanto, só se dedicam a esta atividade quando se asseguram de que ele está suficientemente envolvido no ritual do flerte a ponto de poder encaminhá-lo para um casamento. Uma vez casados, o macho costuma manter uma atividade sexual com outras fêmeas - porém o faz escondendo tal fato das fêmeas do grupo, e portanto, só acumulando prestígio com os outros machos. Uma vez tendo enredado o macho no casamento, a fêmea se dedica a sua atividade usual - a preparação de alimentos e a organização ritual do espaço doméstico - e a atividade sexual se mantém graças à insistência do macho, na busca de sua satisfação. Eventualmente a prática sexual leva à produção de crias, cuja responsabilidade de criação recai sobre a fêmea."
Fragmento do jornal de campo de Paqui Adunur, positivantropólogo do sec. XXIII da Terra Alternativa 12 em visita à Belo Horizonte/Brasil em 2009.

Meio que todo mundo sabe que as coisas funcionam nessa matriz, às vezes explicitamente, às vezes tacitamente. Variantes acontecem e detalhes mudam (muitas das mulheres normopatas daqui parecem curtir um sexozinho dentro dos namoros/casamentos) mas o modelo instituído é esse aí. Ele é expropriador pras mulheres porque elas perdem (a/com a) sua autonomia sexual (o direito de desejar), e perdem sua subjetividade quando convertidas em mero objeto-corpo de satisfação dos desejos masculinos. Alguns homens, incapazes de conquistar o máximo de mulheres ou não-desejosos de tal (românticos, homosexuais, assexuados) são colocados nas posições mais baixas da hierarquia pelos membros dos grupos normopatas (por ambos homens e mulheres). Algumas mulheres, que clamam para si autonomia sexual e rejeitam a ideologia do sexo-enquanto-perda-de-algo, são vistas como não só um objeto-corpo - mas um barato, vagabundo, comum e portanto desinteressante.

Eu rejeitei esse modelo tão logo ele se configurou pra mim. Rejeitei me tornando um romântico; era uma saída segura tanto pela minha dificuldade de cortejar as mulheres quanto pelo meu asco com os grupos normopatas. Decidi encarar as mulheres enquanto sujeitos; declarando não me importar com o sexo, em perfeita contraposição ao normal, eu queria a RELAÇÃO. Apenas para me aproximar delas e ver que elas, por alguma razão que me era obscura na época, não o desejavam; isso não as excitava. Talvez, hoje penso, porque eu havia renegado a corporalidade - a minha e a delas. Ao declarar as mulheres sujeito eu proibí meu corpo de desejá-las, ou ao menos - o que era possível! - de manifestar este desejo. Eu dessexualizei minhas relações ao máximo, só para sofrer com as tensões de meu corpo e pela ausência destas tensões despertadas nelas por mim.

Uma hora, claro, a garrafa estourou. E neste momento eu descobri que tinha um corpo, e que eu precisava vivê-lo se eu quisesse alguma alegria nessa vida. Decidi aprender com os melhores jogadores, os mais pegadores, o COMO FAS de catar mulher. Eu entrei no jogo o tanto que consegui. Eu aprendi a fazer as piadas (que faziam das mulheres corpo-objeto apenas), eu tentei aprender a fugir das relações, eu ironizei (sem muita fé) as mulheres que tinham autonomia sexual. Por trás de todas as piadas eu enxergava uma crítica ao comportamento das mulheres normopatas; eu sabia que meus companheiros homens não pensavam assim, mas saber que eu estava, no final, ironizando o próprio jogo sexual normopata era tranquilizante.

Em um certo momento eu me deparei com os limites de fazer esse jogo duplo. Eu tive de encarar que ou eu partia de fato pra prática e as tratava como objetos-corpo (o que elas estavam acostumadas e o que elas esperavam de um Homem com H) ou dava outro rumo pra coisa. Daí eu larguei o jogo. Daí eu decidi que o único jeito de mudar essa porra toda é que elas e os não-normopatas fizessem uma greve geral, desmontássemos o placar de pontos (o de dentro e o de fora) e começassemos a nos tratar como, afinal, seres humanos. Portadores de corpos e subjetividades nos quais é uma delícia se atirar, dos quais é extático se embebedar, e cujos enredamentos compoem, afinal, quem nós mesmos somos.

O pegador vive a doença. A virgenzinha vive a doença. A vagabunda assumida vive a doença. Qualquer um que se lembre que se tratam de seres humanos, corporal e psiquicamente, atingiu um vislumbre da sanidade. Mas nesse mundo estranho as coisas aparecem ao contrário, e o "louco", o "doidão", o "visionário", o "radical", é aquele que olhou pras coisas e simplesmente constatou o óbvio - enquanto os normais, ou melhor, normopatas, vivem a fantasia de um jogo onde um só ganha quando o outro perde. O amor é o que acontece quando você se afunda em seres humanos de verdade (um ou muitos, à seu gosto); o resto é só fantasma.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Sobre Famílias Nucleares, Tribais & Anarquismo

"Famílias! Os ávaros do amor! Como eu as odeio!" - Gide.

A família nuclear, com suas consequentes "dores edipianas", parece ter sido uma invenção neolítica, uma resposta à "revolução agrícola" com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de caçadores/coletores é formado por cerca de cinquenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando é mantida por clãs dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas, sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as "repúblicas de crianças" e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto - não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norte-americanos preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura.)

Muitas forças estão trabalhando - de forma invisível - para dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a "estabilidade" estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia, o "bando" de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais fica evidente que a família nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade - mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial - do bando.

BEY, Hakim; in "TAZ: Zonas Autônomas Temporárias"
pirateado com permissão do autor

terça-feira, 31 de março de 2009

Eu e o Outro em Todorov e Kipling

(texto escrito para a matéria de Introdução à Antropologia, do prof. Igor, baseado no texto Conquista da América de Tzvetan Todorov e no filme O Homem Que Queria Ser Rei, baseado no livro de Rudyard Kipling)

Ah... a velha questão do Eu versus o Outro. É realmente intrigante e que dá muito pano pra manga. Por isso mesmo vamos parar de enrolação por aqui e ir direto ao ponto, uma vez que não há muito espaço na folha e muita tinta a derramar.


O texto do Todorov e o filme baseado na obra do Kipling têm em comum um ponto: o encontro entre duas culturas diferentes no qual uma, estrangeira, recém chegada e alienígena às realidades locais, tenta dominar militarmente a outra. Não devemos necessariamente pressupor que todo encontro entre culturas diferentes se dará desta forma, apesar de a maioria de tais encontros reportados ter se sucedido assim. Talvez isso se deva ao fato de o homem ocidental dar valor apenas aos choques culturais que envolvam conflitos, uma vez que tais conflitos estão no germe de sua “vitória” sobre o resto do mundo, e a base teórica da ocidentalização do globo.


Vejamos, por exemplo, a posição de Billy – o tradutor. Ele havia chegado à Kafiristão antes de Denny e Peacher, porém ele não era um conquistador, mas um sobrevivente de uma expedição científica. Mesmo soldado, a intenção dele ali não era de guerra. Mesmo britânico (sim e ele era cidadão britânico, apesar de nativo, pois era do exército e assim tinha esse privilégio. Era ocidentalizado a partir de uma caricatura oriental do ocidente), ele não se via como capaz de ocidentalizar aqueles “selvagens”, acabando, da mesma forma como certos náufragos nas américas (como o famoso Caramuru), se integrando a eles. Foi o aparecimento dos conquistadores que transformou a tendência de mimetização da cultura na qual estava solitariamente inserido em um sentimento revigorado de superioridade e dever civilizatório, eis a razão de sua imediata adesão à campanha de conquista dos ingleses.


Naturalmente a primeira reação ao se encontrar com uma cultura alienígena é o estranhamento. A partir disso pode decorrer uma repugnância (como a de muitos padres católicos em relação a indígenas brasileiros), uma admiração pela sua obra e negação da humanidade do outro (como no caso de cortez) e mesmo uma admiração pela cultura e pelos humanos (como talvez no caso de caramuru e de outros convertidos culturais). O que define isso? O que tornaria um europeu do século XVI um entusiasta da cultura indígena enquanto outro a detestaria mortalmente? Qual o jogo de identidades presente ali?


Pode-se arriscar afirmar que uma pessoa que não está totalmente adequada a sua sociedade – um vanguardista, por assim dizer – seria mais facilmente atraído a integrar-se em uma cultura estranha que representa quase uma antítese à cultura da qual ele vem e na qual ele se sente deslocado; por outro lado um indivíduo que defende radicalmente os valores de sua sociedade – um conservador, talvez – se sentiria mais inclinado a rejeitar o diferente com todas suas forças. E que pessoas posicionadas na gradação entre esses dois extremos formariam o poço de onde brotariam os conquistadores como Cortez e Denny, pragmáticos o suficiente para conceder algum valor-utlidade àquela cultura (sem o qual não se sentiriam tentados a conquistá-la) e ao mesmo tempo negar uma condição de igualdade cultural a seus membros.


E agora mudando um pouco o foco da coisa, o que diferencia a conquista de Cortez e a de Denny, que faz com que uma seja vitoriosa e a outra desastrosa? O que um fez que o outro não?


Bem. Ambos utilizaram-se de uma série de coincidências presentes em sua chegada que lhes concedia o título de divindade para o povo nativo. Porém eles o fazem de maneira diferente. Cortez dissemina a dúvida sobre se é humano ou deus, usando essa dúvida e a hesitação que causava como jogo político para efetuar a conquista, mas sem basear sua conquista puramente no fato da divindade, uma vez que essa máscara poderia ser quebrada a qualquer momento. Assim, ele pode se declarar Vice-Rei do México sem se preocupar com a possibilidade de se ferir em público e perder o reinado ao ver ruir sua figura divina.


Denny, por sua vez, entra no personagem que criaram para ele. Sua conquista, num primeiro momento militar e política, se torna religiosa a partir do momento que ganha o apoio de Sikandergul. Ele então coloca a base de seu reinado na figura de sua divindade. Uma vez que tal máscara é quebrada, o reino desmorona sob seus pés. Nem ao exército ele pode recorrer mais, pois que sua máquina militar, a própria moral dos soldados, está fundada nesse fake divino.


É interessante como esse tema do ocidental sendo adorado como deus entre nativos primitivos é recorrente na literatura e na filmografia do século XX. Se tornou mesmo um clichê de desenhos animados.


Mas o filme ainda coloca um outro ponto, muito sutilmente, que é abordado apenas por outro livro de Ficção Científica Soft (aquela ficção mais interessado nas chamadas “ciências leves” – sociais – que nas chamadas “ciências duras” – exatas), intitulado Duna, de Frank Herbert. Nesse livro, dos anos 60, a humanidade havia colonizado a galáxia, estabelecendo um gigante império de estrutura quasi-feudal. Dentro desse império existe uma ordem secreta que tem um braço (a Missionária Protectiva) que tem o dever de ir a planetas com populações “primitivas” e imprimir nas culturas locais um conjunto de lendas e profecias a serem aproveitadas por um membro da ordem que por ventura fosse parar ali e estivesse em apuros.


Da mesma forma, no filme vemos – sutilmente colocado – Alexandre deixando um conjunto de mitos e um símbolo, possivelmente destinados a serem utilizados por um membro de sua seita que chegasse em Kafiristão nalgum futuro. Veja bem: Alexandre promete a vinda de um filho, e que esse filho teria o símbolo do esquadro, do compasso e do olho. Ou seja, o terreno estava preparado para qualquer Denny que chegasse com tal símbolo, facilitador que Cortez não teve em sua conquista. E facilitador que Denny não viu como construção humana, mas como sinal divino, contando na lista de sincronicidades que justificaram sua identificação com o papel que os nativos lhe deram.


Possivelmente essa foi a diferença crucial entre Cortez e Denny, a causa final da derrocada de um e da estrondosa vitória do outro: o modo como um e outro vestiram o papel que os nativos lhes deram, seu pragmatismo e sua ganância. Cortez era um homem que desejava apenas o ouro que pudesse arrancar. Denny estava imbuído de religiosidade cristã (lembrem de sua reação ao ver os nativos jogando polo com cabeças) que lhe fez deixar a ganância de lado e assumir o papel divino. Repare também que sua primeira reação a tal papel foi a de “isso é blasfêmia”.


Talvez uma das lições que Kipling queria passar com a história seja justamente que um dos segredos para se lidar com o outro é justamente relativizar seus próprios conceitos culturais e atingir assim um pragmatismo que lhe permite avaliar melhor o meio no qual se está inserindo.

Lênon Kramer