domingo, 25 de outubro de 2009

Aforismo 001

no mundo temos flores e feras. beleza e destruição. nascimento e morte. porém ele não é esses opostos, e nem sequer eles são opostos. nós apenas os percebemos assim. toda destruição possui em si um devir-beleza, um devir-criação, a morte um devir-nascimento. olhando mais de perto podemos ver que são apenas manifestações diferentes da mesma realidade poliédrica da Trama, poliedricamente irregular, nunca opondo uma face a outra. ou olhando de outro jeito, essas faces nem sequer o são. o ser supõe uma negação, e é isso que cria a ilusão binária. se dissolver o conceito artificial de Ser, de Objeto, revela-se a Potência, que não é una nem plural, pois não é quantificável. somos nós que, com a ilusão do Ser e da busca da Essência, lhe damos forma e número e CPF. lha damos um nome, um rótulo, uma definição. recortamos a realidade e a fragmentamos.


ao dizer que algo nasce, atribuimos a um devir uma existência objetiva, a recortamos de todo o restante da realidade e negamos a existência de outros devires contraditórios. o mesmo ao dizer que algo morre. a morte e o nascimento não são substantivos, não possuem em si substância, fora de nosso próprio mapa de realidade. somos nós que lhes atribuimos sua substância fantasmagórica, "A Morte", "O Nascimento", memes, grades de janelas. as percepções humanas inventam a dualidade, mas o mundo tampouco é uno. a própria unidade é fruto de nosso quantificar. a realidade não possui quantidade, não sendo substância, não possui adjetivo.


então o leitor pensa "mas eu sou! eu estou lendo este texto, portanto eu existo, o que eu experencio é real". pois sim. você é real, eu sou real, este texto é real. mas não por si próprios, porém apenas em experiência. quando a experiência cessa, cessa a realidade. a memória é uma continuação da experiência. sonhos são reais, eles acontecem.


distinção entre material e ideal não faz sentido neste mapa de realidade. alguns dizem que o material, o concreto, é que define a consciência. mas o que é o concreto, pergunto-lhes eu. seria o concreto a economia, como dizem? como eu gostaria de chutar a cotação do dólar! ou seria o concreto a fome, a dor, as sensasões físicas? mas sensações não são produto da mente, relações abstratas? e pensamentos abstratos não se expressam em mudanças concretas na realidade, não são eles próprios também reações químicas e biológicas? onde, no fim das contas, está a oposição entre abstrato e concreto? uma coisa está tão imbricada na outra que querer separá-los e opô-los gera o sentimento de falta que marca nossa civilização. dividimos o mundo e tentamos viver o dia-a-dia em metade dele e buscamos a outra metade em religiões e prazeres e entretenimento.


mas não se trata simplesmente de negar a dualidade em favor de uma unidade essencial de todas as coisas. sendo aí a própria negação o gérmen de nova dualidade, a afirmação de uma verdade superior. dissolvo a dualidade em favor do nulo. no nada não há negação, nem afirmação, apenas há. o nada não é ausência de algo, nem o contrário. é a totalidade da existência, o saldo de todas as equações. não há verdade, pois esta é mais uma relação de sentido, e a realidade não tem sentido.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Reflexões sobre a Alteridade

Lênon Kramer

(texto para trabalho de antropologia)


Para falar sobre o Outro precisamos primeiro entender o que seja o Eu, uma vez que aquele só obtém sentido quando comparado a este. O Eu, identidade primária de um ser senciente, a auto-consciência, é a negação de tudo que esteja lá fora, sendo tudo aquilo que está fora do conjunto do que não-se-é. Ou seja, o conceito de Eu só se torna possível através de um contraste com o Outro.

Assim, temos que essa divisão Eu-Outro é uma coisa arbitrária e muitas vezes irrelevante para o Outro-Lá-Fora, apesar de ser de suma importância para o Eu-Aqui-Dentro, que necessita disso para se afirmar enquanto consciência existente e atuante. “Somente do meu ponto de vista, no qual todos estão e só eu estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim” [1].

Talvez esta seja a origem da atitude que Lévi-Strauss [2] considera como a mais antiga e primária ao se encontrar uma cultura diferente: a de repúdio. Sendo o Eu em princípio uma negação do Outro, a postura psicológica básica é a de negação: eu não sou como eles, e se os costumes deles não são iguais aos meus, devem ser bárbaros e selvagens, uma vez que eu sou um Homem.

Ainda Lévi-Strauss [3] chama a atenção para o fato de que a maioria das culturas se autodesignam com um epíteto que pode ser traduzido por “Os Homens”, enquanto que para as tribos vizinhas reservam epítetos como “maus”, “malvados”, “macacos da terra”, “ovos de piolhos” ou até mesmo “fantasmas” ou “aparições”.

Isso talvez seja uma necessidade do Eu de se afirmar, de se identificar em contraste ao Outro, que, não podendo ser igual (o que desidentificaria o Eu), deve ser necessariamente inferior.

E assim, através desse jogo de identificações, epítetos e diferenciações que a humanidade foi tomando forma. E essa forma definitivamente não é homogênea, como suporiam alguns teóricos, mas completamente heterogênea e diversificada.

Há aí um jogo duplo entre o Eu e o Outro. Pois ao mesmo tempo que há uma tendência a grupos próximos fisicamente se afastarem culturalmente (buscando assim uma identificação pelo contraste), há também uma tendência oposta de se aproximarem culturalmente (buscando assim a interação, ou talvez mesmo como fruto desta). Esse jogo se forma em contrastes e reflexos, trocas e cópias.

Assim a formação de pensamento nas mais diversas culturas não é igual, e nem mesmo semelhante. Cada uma tem seu próprio ethos, que não pode ser desconsiderado ao se fazer uma análise etnográfica.

Não se pode pressupor, como fez Obeyesekere – segundo Sahlins [4] –, que todos os humanos possuem uma mesma racionalidade, uma mesma propensão a seguir a lógica aristotélica-cartesiana ocidental. Cada população específica encara a realidade de sua forma específica, seu próprio túnel-realidade.

Cada cultura é única em sua especificidade. Culturas podem ser misturadas, criadas, modificadas, destruídas... mas serão sempre diferentes entre si e cada uma carregará seus próprios pressupostos e sua própria lógica.

Encontros entre culturas diferentes costumam ser sangrentos, por conta desse instinto de negação. Geralmente ou as duas culturas se misturam ou uma se sobrepõe à outra. Mas nunca saem incólumes.

O ocidente ganhou preponderância cultural nos últimos dois séculos por conta de seu desenvolvimento tecnológico, fruto de sua obsessão por “aumentar continuamente a energia disponível per capita[5]. Assim os ocidentais ganharam a possibilidade de levar (forçar) sua cultura a todos os quatro cantos da terra, sem grande chance de resistência dos demais povos, que até então estavam preocupados com outros tipos de coisas, como desenvolver suas relações de etiqueta, ou seu conhecimento do corpo e da mente humanos, ou qualquer outra coisa.

A aparente vitória do ocidente sobre o resto do mundo se deve menos a sua “superioridade” efetiva do que seu foco de interesse comparado com o de outros povos.

Porém essa globalização teve efeitos colaterais além da ocidentalização[6]: aumentou a chance de as demais culturas se moverem pelo globo. Hoje um dos principais elementos culturais do ocidente, o rock ‘n’ roll não é de origem européia, mas sim africana, assim como o blues, o jazz, apenas para citar alguns dos mais internacionalmente populares.

Hoje com a internet nós temos a possibilidade inclusive de constituição de culturas não-localizadas espacialmente. As chamadas sub-culturas ou tribos urbanas surgem, crescem e desaparecem a cada instante, carregando consigo ethos, morais, costumes e crenças próprias e específicas. Isto talvez seja uma resposta ao problema colocado por Lévi-Strauss[7], afastamentos diferenciais no jogo cultural que barrem a homogeneidade e evitem um enfraquecimento do progresso.



[1] TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América, a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3

[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 333

[3] ibid. p. 334

[4] SAHLINS, Marshall. “Introdução”. In Sahlins, Marshall. Como pensam os nativos: Sobre o Capitão Cook, por exemplo. São Paulo: Edusp, 2001

[5] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 351

[6] há inclusive controvérsias em relação à realidade da tal ocidentalização e qual seu verdadeiro alcance. Movimentos de relocalização cultural existem por todos os lugares.

[7] LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 363

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Sociedade Acéfala

Texto do meu pai

KRAMER, Ernesto: "Introdução ao Pensamento Social", 2001, Edições Eletrônicas Universo Separado.

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A idéia é que cada e todo tipo de grupo que com-põe a comunidade política é autônomo e indepen-dente, sendo garantido o respeito dos indivíduos pelos direitos dos outros.

As rixas entre os humanos têm sido solucionadas pelas formas adotadas para garantir esses direitos.

Diferentes formas de admissão fazem os critérios para a distribuição das funções políticas.

As pessoas, organizadas em conjuntos ou associações com filiação voluntária, compartilham entre si os serviços públicos. A autoridade para a distribuição destes trabalhos entre os diferentes conjuntos, que poderíamos também chamar de Comitês ou Comissões, e a convocação para realizá-los, é dada a assembléias populares.

A entrega de tarefas específicas a indivíduos responsáveis, a comissões ou comitês, depende da envergadura e/ou complexidade do trabalho precisado pela comunidade.

Responsáveis pela direção e execução de tarefas pontuais são nomeados pela livre escolha de seus companheiros e confirmados pela assembléia. Esta última também os controla, cobra deles a efetiva-ção dos encargos, e os controla diretamente ou por meio de pessoas designadas especificamente para esta tarefa.

Os litígios seriam solucionados por acordos. Es-tes poderiam ser supervisionados por um Conselho, nos casos que tivessem solução mais dificultosa.

Diferentes tipos de conselhos podem coexistir, para debater questões de interesse público, ações de indivíduos que infringem regulações sociais [leis] estabelecidas, desrespeitem direitos ou não cumpram obrigações reconhecidas.

Critérios para distribuir funções políticas, para organizar a vida pública, são de exclusiva responsabilidade do ‘todo social’, o qual se expressa por meio de assembléias populares. Pelo tanto, estes critérios são considerados mutáveis; podem mudar segundo o interesse social, mas não por in-teresses individuais ou de grupos minoritários.

Membros de Conselhos são escolhidos por qualida-des de sabedoria e habilidade de negociação, mas não contam com autoridade para dar decisão obri-gatória em questões de litígio.

Porta-vozes dos diferentes conjuntos, escolhidos pelos membros dos conjuntos como seus represen-tantes, desempenham papel importante nos debates. Embora suas opiniões tenham importância no ‘teatro social’, o cargo não confere qualquer autoridade nem privilégio ao seu ocupante. Elas são pessoas que seriam consideradas obrigadas a participar de qualquer debate público, quer que o assunto lhes seja de particular interesse ou não.

Os porta-vozes teriam também a obrigação recíproca de informar a seus representados sobre os as-suntos tratados nas reuniões nas que participarem.

Manifesto da Produção Independe de Jogos Interativos e Poesia

(Texto a respeito da produção do jogo "Corrida Eleitoral" e algumas implicações)

Endereço do jogo: http://corridaeleitoral.tripod.com/

Por Gustavo de Castro Linzmayer


Vejo os jogos interativos como um grande campo de novas possibilidades de poesia e crítica. Em um tempo em que a linguagem, os signos, as estruturas simbólicas, as palavras se tornaram tão banalizadas a ponto de todo discurso revolucionário ser tido como "repetição", "fase da vida", "rebeldia adolescente" ou mesmo ter se tornado produto de consumo e alienação, a linguagem computacional, algoritímica, abre grandes possibilidades de criação de ambientes de imersão inteligíveis através de combinações de comandos lógicos, podendo ser ferramenta de exploração de usos novos da linguagem. Além disso, o meio digital é um campo onde se explicita a divisão de clases na sociedade, que tem sido camuflada de todos os modos: poucos são os que falam a língua digital, a língua das máquinas. Um grande exemplo disso são os chamados "Centros de Inclusão Digital", centros de aprendizados de informática financiados pela iniciativa privada. Esses centros, que procuram buscar a adesão e a simpatia das classes excluídas, mascaram seus interesses sob o pretexto de iniciativas de caridade, de um interesse dos empresários na educação dos trabalhadores. Na verdade, esses centros possuem administração e hierarquia rigorosamente vinculadas aos reais interesses da burguesia. Neles a informática é posta e ensinada apenas como uma ferramenta de utilidade prática do trabalho, ou seja, algo que torna a produção mais eficiente e lucrativa para o burguês. Jamais como uma nova possibilidade de intercâmbio alternativo de informações ou mesmo um campo de novas criações. Nada muito diferente de um trabalhador que recebe instruções para aprender a operar uma máquina ou a varrer um chão, só que em uma versão high-tech, e, assustadoramente, não no ambiente de trabalho, mas no próprio bairro, invadindo assim, o tempo livre do trabalhador para explora-lo melhor, sob o disfarce da caridade. O próprio nome "Centro de Inclusão Digital" já deixa subentendida uma divisão de classes: existem incluídos e excluídos. Obviamente, os incluídos são os bondosos burgueses que tem a missão divina de incluírem os pobres diabos. Mesmo assim, vejo que esses centros deixam brechas, tornando-se assim um espaço interessante para a proliferação de novas iniciativas. Uma vez que não há um controle total sobre as operações do usuário, que, acaba encontrando pequenos espaços de liberdade na sua navegação, abrindo e fechando janelas durante as aulas, aproveitando os tempos extras, etc.

No texto "Cinema: Instrumento de Poesia", Luis Buñuel enuncia as similaridades do mecanismo pela qual a linguagem cinematográfica se assimila com o subconsciente humano. Elementos como os deslocamentos rápidos temporais e espaciais, a capacidade de se enfatizar um determinado objeto pelo close-up, recortando-o do ambiente, criando uma fragmentação espaço-temporal, são alguns exemplos de como o ecritor e cineasta defendia um cinema que fosse capaz de explorar o mundo dos desejos, do universo insólito e desconhecido do ser humano. Similarmente, aqui, farei uma tentativa de sugerir alguns elementos próprios da computação que tornam os jogos poéticos. A linguagem dos jogos computacionais, tem muita poesia. Mas, da mesma forma que o cinema em sua gênese demorou para ser assimilado como meio de criação de arte, os jogos passam por um processo similar... Nem todo filme é artístico, muito menos todo jogo... É necessário que existam elementos coerentes nesse sentido no processo de criação do trabalho. Os jogos, por exemplo, colocam a eternidade do poeta em um patamar tangível: não mais se trata de um idealismo do poeta romântico que, desajustado, afasta-se da sociedade e, alienando-se do processo de produção social, acaba por fortalecer os meios simbólicos da propriedade privada. Agora tratam-se do comando "while", um dos princípios básicos da programação. Um "while" é um comando que torna capaz a repetição indeterminada de outros determinados comandos, até que se cumpra uma condição que interrompa o ciclo. Mas é possível que essa condição não se interrompa nunca e até criar mecanismos para que, intencionalmente, essa condição se torne absurda, impossível. Trata-se de um infinito indeterminado, existencial, não de um infinito idealizado. Essa questão do infinito advém de conversas com um grande gênio, artista, programador e pensador da arte nos jogos, chamado André Zangari, também ativo nas produções independentes. Outro elemento interessante é a questão da aleatoriedade, do poder de gerar, dentro de certos limites, um grau alto de indeterminação dos elementos dentro de um mesmo programa, o que faz com que você nunca jogue o mesmo jogo duas vezes. Combinando esses dois elementos, o while e a aleatoriedade, é possível criar ciclos infinitos que não sejam simplesmete repetições estáticas viciosas, que perde o sentido com o tempo, ou que percam-se em si mesmos, mas uma ferramente de geração de labirintos infinitos com elementos sempre novos.

Outra questão é a necessidade de escolha do usuário: é impossível avançar, superar certos estágios de um jogo como um mero espectador de cinema: sempre existem encruzilhadas que dependerão das escolhas racionais do jogador, o que o torna muito mais responsável pelo ambiente no qual imerge. Aliás, a escolha é possível por conta de um outro elemento básico da programação: as condicionais, geralmente utilizadas pelo comando "if", que permite que determinados blocos de comandos sejam executados e outros não dependendo das condições de itens variáveis na excecução do programa. Esses mecanismos podem ser utilizados muito bem em função da alienação, de criação de realidades separadas do processo produtivo real que tem por função complementar o prazer que o trabalhador, o excluído não consegue alcançar na sua vida cotidiana. Assim, através dessas reflexões, no jogo que eu produzi, o jogador é colocado na posição de um candidato a presidência. Dessa forma, a linguagem computacional é utilizada para expor mecanismos de poder real. Na medida em que o partido do candidato anuncia uma política nova e, no decorrer do jogo, o usuário, por sua própria escolha e responsabilidade é levado a tomar decisões que contrariam o discurso adotado, com o único fim de vencer, por alguns instantes é possível refletir sobre as contradições dos reais interesses aos quais os partidos servem e o discurso adotado. Por mais bem intencionado que o jogador possa ser, ele é dependente de uma estrutura de poder que exige mudanças de programas, falsificação ideológica e corrupções para ser eleito. E é precisamente a utilização desses artifícios que levam um candidato a se eleger.

“Corrida Eleitoral” não é o primeiro jogo nesse sentido. Existe o McDonald's video-game, no qual o jogador é colocado na posição de um dono de franquia da rede:

http://www.mcvideogame.com/

Existe o Faith Fighter, um jogo de luta entre várias divindades populares em culturas diferentes e, onde o jogador experimenta, por alguns instantes, controlar os deuses, ao invés de ser controlado por eles:

http://www.molleindustria.org/faith-fighter

E existe um jogo, Hustler, no qual baseei a engine do que eu produzi onde o objetivo é fazer o maior lucro possível em 90 dias de tráfico de drogas:

http://www.newgrounds.com/portal/view/341675#

A favor da produção independente dos jogos: baixo custo, utilização de recursos próprios, formação de equipes pequenas em torno de interesses comuns pela arte. A produção diletante de arte pode requisitar um esforço muito grande para a concretização dos programas e, ainda, com a falta de grandes recursos comparados aos recursos das grandes empresas produtoras. Porém, para compensar essa falta, o artista deverá fazer um esforço no sentido do aproveitamento das possibilidades da linguagem, que tornem o jogo interessante e, da subjetividade, da criação de estilos próprios que permitam que as limitações técnicas de gráficos e sons sejam compensados por uma diferenciação do estilo. Para levantar recursos e tempo livre, os artistas, provavelmente, encontrarão grandes obstáculos. Porém, desse esforço, decorrerá que não se trata de uma arte banalizada e comercializada, engrandecendo os significados. Temos no Brasil, no cinema, o exemplo do Cinema Novo, dos anos 60 e 70. Nessa época, era notável a disparidade entre os recursos técnicos norte-americanos e europeus e os dos países do chamado terceiro mundo. Não havendo possibilidades de se criar um cinema nos moldes norte-americanos por conta das limitações técnicas e financeiras, os cineastas brasileiros, destaque-se Glauber Rocha, optaram por um aprofundamento nas questões sociais e alegorias políticas a respeito e mais de acordo com o contexto e sentimentos locais. Essa experiência, é, sem dúvida, uma rica fonte de sugestões para as produções independentes da nova arte digital.


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Caso o Zé Ninguém não tenha ouvido direito

PEREIRA, Iago in "Dreaming's Mystery Lane"
www.mysterylane.blogger.com.br


"(...) Vou descrever aqui o comportamento sexual praticado por grupos de Homo Sapiens que sofrem de uma gravíssima doença emocional - a normopatia. Entre estes grupos, os machos são detentores de um status incontesto - sujeito neutro de enunciação, tomador de decisões e provedor financeiro. As fêmeas costumam desfrutar de um período relativamente liberal entre o fim de suas adolescências e o começo de suas vidas adultas. Neste período, os machos buscam o intercurso com o maior número de fêmeas possível - o que, feito com sucesso, lhes rende status tanto entre machos quanto entre fêmeas. Para os machos, é importante que este intercurso não seja seguido de uma relação posterior - o que é visto como perda da liberdade, enredamento. As fêmeas perdem status às vistas do grupo quando praticam intercurso com os machos; portanto, só se dedicam a esta atividade quando se asseguram de que ele está suficientemente envolvido no ritual do flerte a ponto de poder encaminhá-lo para um casamento. Uma vez casados, o macho costuma manter uma atividade sexual com outras fêmeas - porém o faz escondendo tal fato das fêmeas do grupo, e portanto, só acumulando prestígio com os outros machos. Uma vez tendo enredado o macho no casamento, a fêmea se dedica a sua atividade usual - a preparação de alimentos e a organização ritual do espaço doméstico - e a atividade sexual se mantém graças à insistência do macho, na busca de sua satisfação. Eventualmente a prática sexual leva à produção de crias, cuja responsabilidade de criação recai sobre a fêmea."
Fragmento do jornal de campo de Paqui Adunur, positivantropólogo do sec. XXIII da Terra Alternativa 12 em visita à Belo Horizonte/Brasil em 2009.

Meio que todo mundo sabe que as coisas funcionam nessa matriz, às vezes explicitamente, às vezes tacitamente. Variantes acontecem e detalhes mudam (muitas das mulheres normopatas daqui parecem curtir um sexozinho dentro dos namoros/casamentos) mas o modelo instituído é esse aí. Ele é expropriador pras mulheres porque elas perdem (a/com a) sua autonomia sexual (o direito de desejar), e perdem sua subjetividade quando convertidas em mero objeto-corpo de satisfação dos desejos masculinos. Alguns homens, incapazes de conquistar o máximo de mulheres ou não-desejosos de tal (românticos, homosexuais, assexuados) são colocados nas posições mais baixas da hierarquia pelos membros dos grupos normopatas (por ambos homens e mulheres). Algumas mulheres, que clamam para si autonomia sexual e rejeitam a ideologia do sexo-enquanto-perda-de-algo, são vistas como não só um objeto-corpo - mas um barato, vagabundo, comum e portanto desinteressante.

Eu rejeitei esse modelo tão logo ele se configurou pra mim. Rejeitei me tornando um romântico; era uma saída segura tanto pela minha dificuldade de cortejar as mulheres quanto pelo meu asco com os grupos normopatas. Decidi encarar as mulheres enquanto sujeitos; declarando não me importar com o sexo, em perfeita contraposição ao normal, eu queria a RELAÇÃO. Apenas para me aproximar delas e ver que elas, por alguma razão que me era obscura na época, não o desejavam; isso não as excitava. Talvez, hoje penso, porque eu havia renegado a corporalidade - a minha e a delas. Ao declarar as mulheres sujeito eu proibí meu corpo de desejá-las, ou ao menos - o que era possível! - de manifestar este desejo. Eu dessexualizei minhas relações ao máximo, só para sofrer com as tensões de meu corpo e pela ausência destas tensões despertadas nelas por mim.

Uma hora, claro, a garrafa estourou. E neste momento eu descobri que tinha um corpo, e que eu precisava vivê-lo se eu quisesse alguma alegria nessa vida. Decidi aprender com os melhores jogadores, os mais pegadores, o COMO FAS de catar mulher. Eu entrei no jogo o tanto que consegui. Eu aprendi a fazer as piadas (que faziam das mulheres corpo-objeto apenas), eu tentei aprender a fugir das relações, eu ironizei (sem muita fé) as mulheres que tinham autonomia sexual. Por trás de todas as piadas eu enxergava uma crítica ao comportamento das mulheres normopatas; eu sabia que meus companheiros homens não pensavam assim, mas saber que eu estava, no final, ironizando o próprio jogo sexual normopata era tranquilizante.

Em um certo momento eu me deparei com os limites de fazer esse jogo duplo. Eu tive de encarar que ou eu partia de fato pra prática e as tratava como objetos-corpo (o que elas estavam acostumadas e o que elas esperavam de um Homem com H) ou dava outro rumo pra coisa. Daí eu larguei o jogo. Daí eu decidi que o único jeito de mudar essa porra toda é que elas e os não-normopatas fizessem uma greve geral, desmontássemos o placar de pontos (o de dentro e o de fora) e começassemos a nos tratar como, afinal, seres humanos. Portadores de corpos e subjetividades nos quais é uma delícia se atirar, dos quais é extático se embebedar, e cujos enredamentos compoem, afinal, quem nós mesmos somos.

O pegador vive a doença. A virgenzinha vive a doença. A vagabunda assumida vive a doença. Qualquer um que se lembre que se tratam de seres humanos, corporal e psiquicamente, atingiu um vislumbre da sanidade. Mas nesse mundo estranho as coisas aparecem ao contrário, e o "louco", o "doidão", o "visionário", o "radical", é aquele que olhou pras coisas e simplesmente constatou o óbvio - enquanto os normais, ou melhor, normopatas, vivem a fantasia de um jogo onde um só ganha quando o outro perde. O amor é o que acontece quando você se afunda em seres humanos de verdade (um ou muitos, à seu gosto); o resto é só fantasma.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Sobre Famílias Nucleares, Tribais & Anarquismo

"Famílias! Os ávaros do amor! Como eu as odeio!" - Gide.

A família nuclear, com suas consequentes "dores edipianas", parece ter sido uma invenção neolítica, uma resposta à "revolução agrícola" com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de caçadores/coletores é formado por cerca de cinquenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando é mantida por clãs dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas, sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as "repúblicas de crianças" e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto - não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norte-americanos preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura.)

Muitas forças estão trabalhando - de forma invisível - para dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a "estabilidade" estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia, o "bando" de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais fica evidente que a família nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade - mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial - do bando.

BEY, Hakim; in "TAZ: Zonas Autônomas Temporárias"
pirateado com permissão do autor

terça-feira, 31 de março de 2009

Eu e o Outro em Todorov e Kipling

(texto escrito para a matéria de Introdução à Antropologia, do prof. Igor, baseado no texto Conquista da América de Tzvetan Todorov e no filme O Homem Que Queria Ser Rei, baseado no livro de Rudyard Kipling)

Ah... a velha questão do Eu versus o Outro. É realmente intrigante e que dá muito pano pra manga. Por isso mesmo vamos parar de enrolação por aqui e ir direto ao ponto, uma vez que não há muito espaço na folha e muita tinta a derramar.


O texto do Todorov e o filme baseado na obra do Kipling têm em comum um ponto: o encontro entre duas culturas diferentes no qual uma, estrangeira, recém chegada e alienígena às realidades locais, tenta dominar militarmente a outra. Não devemos necessariamente pressupor que todo encontro entre culturas diferentes se dará desta forma, apesar de a maioria de tais encontros reportados ter se sucedido assim. Talvez isso se deva ao fato de o homem ocidental dar valor apenas aos choques culturais que envolvam conflitos, uma vez que tais conflitos estão no germe de sua “vitória” sobre o resto do mundo, e a base teórica da ocidentalização do globo.


Vejamos, por exemplo, a posição de Billy – o tradutor. Ele havia chegado à Kafiristão antes de Denny e Peacher, porém ele não era um conquistador, mas um sobrevivente de uma expedição científica. Mesmo soldado, a intenção dele ali não era de guerra. Mesmo britânico (sim e ele era cidadão britânico, apesar de nativo, pois era do exército e assim tinha esse privilégio. Era ocidentalizado a partir de uma caricatura oriental do ocidente), ele não se via como capaz de ocidentalizar aqueles “selvagens”, acabando, da mesma forma como certos náufragos nas américas (como o famoso Caramuru), se integrando a eles. Foi o aparecimento dos conquistadores que transformou a tendência de mimetização da cultura na qual estava solitariamente inserido em um sentimento revigorado de superioridade e dever civilizatório, eis a razão de sua imediata adesão à campanha de conquista dos ingleses.


Naturalmente a primeira reação ao se encontrar com uma cultura alienígena é o estranhamento. A partir disso pode decorrer uma repugnância (como a de muitos padres católicos em relação a indígenas brasileiros), uma admiração pela sua obra e negação da humanidade do outro (como no caso de cortez) e mesmo uma admiração pela cultura e pelos humanos (como talvez no caso de caramuru e de outros convertidos culturais). O que define isso? O que tornaria um europeu do século XVI um entusiasta da cultura indígena enquanto outro a detestaria mortalmente? Qual o jogo de identidades presente ali?


Pode-se arriscar afirmar que uma pessoa que não está totalmente adequada a sua sociedade – um vanguardista, por assim dizer – seria mais facilmente atraído a integrar-se em uma cultura estranha que representa quase uma antítese à cultura da qual ele vem e na qual ele se sente deslocado; por outro lado um indivíduo que defende radicalmente os valores de sua sociedade – um conservador, talvez – se sentiria mais inclinado a rejeitar o diferente com todas suas forças. E que pessoas posicionadas na gradação entre esses dois extremos formariam o poço de onde brotariam os conquistadores como Cortez e Denny, pragmáticos o suficiente para conceder algum valor-utlidade àquela cultura (sem o qual não se sentiriam tentados a conquistá-la) e ao mesmo tempo negar uma condição de igualdade cultural a seus membros.


E agora mudando um pouco o foco da coisa, o que diferencia a conquista de Cortez e a de Denny, que faz com que uma seja vitoriosa e a outra desastrosa? O que um fez que o outro não?


Bem. Ambos utilizaram-se de uma série de coincidências presentes em sua chegada que lhes concedia o título de divindade para o povo nativo. Porém eles o fazem de maneira diferente. Cortez dissemina a dúvida sobre se é humano ou deus, usando essa dúvida e a hesitação que causava como jogo político para efetuar a conquista, mas sem basear sua conquista puramente no fato da divindade, uma vez que essa máscara poderia ser quebrada a qualquer momento. Assim, ele pode se declarar Vice-Rei do México sem se preocupar com a possibilidade de se ferir em público e perder o reinado ao ver ruir sua figura divina.


Denny, por sua vez, entra no personagem que criaram para ele. Sua conquista, num primeiro momento militar e política, se torna religiosa a partir do momento que ganha o apoio de Sikandergul. Ele então coloca a base de seu reinado na figura de sua divindade. Uma vez que tal máscara é quebrada, o reino desmorona sob seus pés. Nem ao exército ele pode recorrer mais, pois que sua máquina militar, a própria moral dos soldados, está fundada nesse fake divino.


É interessante como esse tema do ocidental sendo adorado como deus entre nativos primitivos é recorrente na literatura e na filmografia do século XX. Se tornou mesmo um clichê de desenhos animados.


Mas o filme ainda coloca um outro ponto, muito sutilmente, que é abordado apenas por outro livro de Ficção Científica Soft (aquela ficção mais interessado nas chamadas “ciências leves” – sociais – que nas chamadas “ciências duras” – exatas), intitulado Duna, de Frank Herbert. Nesse livro, dos anos 60, a humanidade havia colonizado a galáxia, estabelecendo um gigante império de estrutura quasi-feudal. Dentro desse império existe uma ordem secreta que tem um braço (a Missionária Protectiva) que tem o dever de ir a planetas com populações “primitivas” e imprimir nas culturas locais um conjunto de lendas e profecias a serem aproveitadas por um membro da ordem que por ventura fosse parar ali e estivesse em apuros.


Da mesma forma, no filme vemos – sutilmente colocado – Alexandre deixando um conjunto de mitos e um símbolo, possivelmente destinados a serem utilizados por um membro de sua seita que chegasse em Kafiristão nalgum futuro. Veja bem: Alexandre promete a vinda de um filho, e que esse filho teria o símbolo do esquadro, do compasso e do olho. Ou seja, o terreno estava preparado para qualquer Denny que chegasse com tal símbolo, facilitador que Cortez não teve em sua conquista. E facilitador que Denny não viu como construção humana, mas como sinal divino, contando na lista de sincronicidades que justificaram sua identificação com o papel que os nativos lhe deram.


Possivelmente essa foi a diferença crucial entre Cortez e Denny, a causa final da derrocada de um e da estrondosa vitória do outro: o modo como um e outro vestiram o papel que os nativos lhes deram, seu pragmatismo e sua ganância. Cortez era um homem que desejava apenas o ouro que pudesse arrancar. Denny estava imbuído de religiosidade cristã (lembrem de sua reação ao ver os nativos jogando polo com cabeças) que lhe fez deixar a ganância de lado e assumir o papel divino. Repare também que sua primeira reação a tal papel foi a de “isso é blasfêmia”.


Talvez uma das lições que Kipling queria passar com a história seja justamente que um dos segredos para se lidar com o outro é justamente relativizar seus próprios conceitos culturais e atingir assim um pragmatismo que lhe permite avaliar melhor o meio no qual se está inserindo.

Lênon Kramer

um povo bem armado é a melhor defesa contra a tirania

un pueblo bien armado es la mejor defensa contra la tirania

an well-armed folk is the best defence against tirany


meme anexo 1 - lembrando que por "armas" não estou me referindo apenas às físicas, mas também às mentais, psicológicas, culturais, de conhecimento, etc...

meme anexo 1 - recordando que por "armas" no estoy referindom apenas a las fisicas, sino que también a las mentales, psicologicas, culturales, de conocimiento, etc...

anex meme 1 - remembering that by "weapons" i'm not refering just to the fisical ones, but also to the mentals, psichologicals, culturals, of knowledge, etc

segunda-feira, 30 de março de 2009

Religião & Revolução (por Hakim Bey)

O dinheiro real e a religião hierárquica parecem ter surgido no mesmo misterioso momento, entre o baixo neolítico e o terceiro milênio antes de Cristo, na Suméria ou Egito. Quem nasceu primeiro, o ovo ou galinha? Seria um a resposta do outro ou um o aspecto do outro?

Não há dúvida de que o dinheiro possui uma profunda implicação religiosa; desde o primeiro momento de sua existência começou a lutar pela condição do espírito – para separar a si mesmo do mundo corporal, para transcender a materialidade, para converter-se em um símbolo realmente eficaz.

Com a invenção da escrita nos idos de 3100 A.C, o dinheiro como o conhecemos emergiu a partir de um complexo sistema de fichas de argila ou contadores que representavam bens materiais, tomando a forma de contas escritas de créditos impressos sobre tábuas de argilas. Praticamente sem exceção, estes cheques parecem referir-se a dívidas com o Estado, com o Templo, e na teoria poderiam ser usados em um amplo sistema de trocas com notas de crédito “acunhadas”pela teocracia.

As moedas não apareceriam até 700 A.C na Grécia, na Ásia Menor; eram fabricadas de electrum (ouro e prata) não porque estes metais tinham um valor básico mas porque eram sagrados – sol e lua. A diferença de valor entre elas sempre girava na proporção de 14:1, não porque a terra continha 14 vezes a quantidade de prata que de ouro, mas porque a Lua tarda 14 “Sóis” para crescer da lua minguante à cheia. As moedas puderam originar-se como fichas do templo simbolizando a parte que os devotos compartilhavam do sacrifício – souvenires sagrados, que mais tarde puderam ser trocados por bens já que tinham “mana”, como valor de uso.

(Esta função pode ter se originado no comércio na Idade da Pedra com cabeças de machado de pedra cerimoniais usadas nos ritos de distribuição do tipo Potlach¹).

Diferentemente, com as notas de crédito da Mesopotâmia, as moedas eram gravadas com imagens sagradas e eram vistas como objetos liminares, nodos entre a realidade cotidiana e o mundo dos espíritos (isto aponta ao costume de dobrar moedas para espiritualizá-las e lançá-las dentro de um poço, que são os olhos do outro mundo) a dívida em si mesma – o verdadeiro conteúdo de todo dinheiro – é um conceito altamente espiritual. Como o tributo (dívida primitiva) exemplifica a capitulação a um “poder legítimo” de expropriação mascarando em si a ideologia religiosa – mas com a dívida real diz respeito à habilidade unicamente espiritual de reproduzir-se a si mesmo como se fosse um ser orgânico. Inclusive agora permanece como a única substância morta em todo mundo que possui esse poder – “o dinheiro gera dinheiro”. A essas alturas o dinheiro começa a tomar um aspecto paródico vis-à-vis com a religião – parecendo o dinheiro desejar rivalizar com deus para converter-se em um espírito imanente na forma metafísica a qual, apesar de sê-lo, “governa o mundo”. A religião deve tomar nota dessa natureza blasfêmia do dinheiro e condená-lo como “contra natura”, anti-natural. O dinheiro e a religião entram em oposição - um não pode servir à Deus e a Mammon² simultaneamente; mas enquanto a religião continuar atuando como a ideologia da separação (o Estado hierárquico, a expropriação, etc) nunca poderá realmente dominar o problema-do-dinheiro.

Os reformistas uma e outra vez surgiram de dentro da religião para expulsar os prestamitas³ do templo, que sempre voltam – ao final, lentamente os prestamitas se convertem no Templo (não é casualidade que os bancos no decorrer dos tempos imitaram as formas da arquitetura religiosa).

De acordo com Weber⁴ foi Calvino quem finalmente resolveu o problema com sua justificação teológica para a “usura” – mas esta apenas merece atenção por parte dos Protestantes reais, como os Ranters⁵ e os Diggers⁶, aqueles que propuseram que a religião deveria de uma vez por todas entrar em total oposição com o dinheiro – e deste modo iniciaria o Milênio. Talvez pensassem que a Ilustração fosse a mais adequada para conseguir resolver o problema – desejando a religião como a ideologia da classe dominante e substituindo-a com o racionalismo (e as Economias Clássicas). Esta fórmula de qualquer forma não faria justiça àqueles iluministas que propuseram o desmantelamento de todas as ideologias de poder e autoridade - não ajudaram a explicar o porque da religião “oficial” falhar na hora de afirmar seu potencial como oposição e, ao contrário, apostou em prover suporte moral ao Estado e ao Capital.

Com a influência do Romantismo, no entanto surgiu – tanto dentro quanto fora da “religião oficial” – uma crescente sensação de espiritualidade como alternativa aos aspectos opressivos do Liberalismo e seus aliados intelectuais/artísticos. Por um lado esse sentido conduziu a uma forma conservadora-revolucionária de reação romântica (Novalis⁷, por exemplo) – mas por outro lado também se alimentou da velha tradição herética (a qual também começou com o nascimento da “Civilização” como um movimento de resistência contra a teocracia da expropriação) – e encontrou a si mesma com uma estranha nova aliança com o racionalismo radical (a então nascente “esquerda”). William Blake⁸, por exemplo, ou a Capillas Blasfemas, de Spence e seus seguidores, representam essa tendência. O encontro entre espiritualidade e resistência não é algum tipo de evento surrealista ou anômalo para ser aplanado ou racionalizado pela “História” – antes, ocupa uma posição nas profundas raízes do “radicalismo”; - e apesar do ateísmo militante de Marx ou Bakunin (em si mesmo um tipo de misticismo mudado ou “heresia”), o espiritual, todavia permanece indissoluvelmente ligado com a “Velha Boa Causa” que ajudou a criar.

Faz alguns anos Régis Debray⁹ escreveu um artigo apontando que apesar de as confiadas predições do materialismo do século XIX, a religião ainda falhava perseverantemente em desaparecer – e talvez fosse a hora para a Revolução preocupar-se sobre essa misteriosa persistência. Vindo de uma cultura católica, Debray estava interessado na Teologia da Libertação, que é uma projeção antiga quase herética dos pobres Franciscanos e o recorrente re-descobrimento do “ comunismo bíblico”. Se tivesse sido considerada parte da cultura protestante poderia ser uma referência ao século XVII, buscando sua verdadeira herança. Se fosse muçulmana poderia ter evocado o radicalismo dos xiitas ou ismailitas, ou o anticolonialismo neo-sufi do século XIX. Toda religião dá lugar a sua própria antítese interna uma e outra vez; toda religião tem considerado as implicações da oposição moral ao poder; todas contradições contém um vocabulário de resistência como também uma capitulação à opressão. Falando amplamente alguém poderia dizer que até agora esta “contra – tradição” – que está tanto fora como dentro da religião – tem constituído um conteúdo suprimido. A pergunta de Debray se referia ao potencial para sua realização, mas a Teologia da Libertação perdeu a maior parte de seu apoio dentro da igreja quando não pode manter durante mais tempo sua posição como rival (ou cúmplice) do Comunismo Soviético; e não pode manter esta função devido ao colapso comunista.

Mas alguns teólogos da Libertação provaram ser sinceros, e ainda persistem nela (como no México); Além disso, uma tendência inteiramente submergida e relacionada com o Catolicismo, exemplificada dentro da Ortodoxia (por ex. Bakunin), o Protestantismo, O Judaísmo, O Islamismo, e (de uma maneira diferente) o Budismo; e ainda, a maioria das formas de espiritualidade indígenas sobreviventes (por exemplo o Xamanismo) ou o sincretismo Afro-americano podem encontrar um ponto comum com várias tendências radicais com as religiões “maiores” em questões como meio ambiente, e a moralidade do anti-capitalismo. Apesar de alguns elementos de reação romântica, vários movimentos New Age e pós-new age podem também associar-se com esta ampla categoria.

Em um ensaio anterior havíamos esboçado as idéias parar crer que o colapso do Comunismo implicava no triunfo de seu único oponente, o Capitalismo; de acordo com a propaganda neoliberal só existe um mundo único agora; e esta situação política tem tido graves implicações para uma teoria do dinheiro como entidade virtual (autônoma, espiritualizada e todo-poderosa) do universo único de significado. Com estas condições tudo o que uma vez foi uma terceira possibilidade (neutralidade, retirada, contra-cultura, o “terceiro mundo”, etc) agora deve encontrar-se a si mesma em uma nova situação. Não mais existe uma segunda posição - como pode haver uma terceira? – As “alternativas“ têm sido reduzidas catastroficamente. O mundo único está agora em posição de esmagar qualquer coisa que uma vez escapou de seu abraço estático. Graças à desafortunada distração de prosseguir uma guerra fundamentalmente econômica contra o Império do Mal. Já não há terceiro caminho, não há nenhum mais. Tudo o que é diferente deve subsumir-se na uniformidade do Mundo Único – ou também se descobrirá como oposição a esse mundo. Tomadas essas teses como dadas, devemos perguntar onde se localizará a religião neste novo mapa de zonas de capitulação e resistência. Se “a revolução” foi liberada do incubo da opressão Soviética e esta agora é de novo um conceito válido, estamos finalmente com uma posição para oferecer uma tentativa de resposta à questão posta por Debray?

Tomando “a religião” como um todo, incluindo inclusive esses aspectos como o Xamanismo que pertencem a sociedade mais que ao Estado (segundo a antropologia de Clastres¹⁰); incluindo politeísmo, monoteísmo e no-teismo; incluindo misticismo e heresias tanto como ortodoxias, igrejas reformadas e novas religiões – o sujeito de estudo obviamente perde definição, rebeldia, coerência; e não pode ser questionado porque só geraria um babel de reações em vez de uma resposta. Mas a religião se refere a algo – chamá-lo uma certa variedade de cores no espectro do futuro humano – e como tal deve ser considerado (ao menos temporariamente) como uma entidade dialógica valida e como um sujeito teorizável. No movimento triunfal do Capital – referimo-nos ao seu momento processual – toda religião somente pode ser vista como uma nulidade, por exemplo, como um tipo de comodidade a ser empacotada e vendida, um recurso a ser desmontado, ou uma oposição a ser eliminada. Qualquer idéia ou ideologia que não pode ser subsumida ao “ Fim da História” do capital deve ser condenada. Isto inclui tanto a reação como a resistência – e desde já em maior parte a re-conexão não separativa (religare) da consciência com “ o espírito” como autodeterminação imediata imaginativa/ imaginária e criação de valores – a meta original de todo ritual e culto. A religião em outras palavras perdeu toda conexão com o poder mundial porque o poder migrou fora do mundo – abandonou inclusive o Estado e logrou a pureza da apoteose, como Deus que abandonou Anthony no poema e Cavafy¹¹. Os poucos Estados (majoritariamente islâmicos) onde a religião possui poder estão localizados precisamente dentro da região continuamente reduzida da oposição nacional ao Capital – (por conseguinte provêm de estranhos companheiros de cama como Cuba!). Como qualquer outra “terceira possibilidade” a religião se encontra com uma nova dicotomia: capitulação total ou a revolta. Por conseguinte, o “potencial revolucionário” da religião aparece claramente – ainda que não pareça claro se pode tomar a forma de reação ou de radicalismo - ou inclusive pode ser que a religião ainda não estivera derrotada – já ser sua negativa ir de um inimigo a um fantasma.

Na Rússia e Sérvia, a Igreja Ortodoxa parece haver-se lançado a sua sorte como reação contra à Nova Ordem Mundial e por conseguinte encontraram novos companheiros em seus velhos opressores Bolcheviques. Na Chechênia a Ordem Sufi Naqshbandi continua seu combate de séculos contra o imperialismo Russo. Em Chiapas há uma estranha aliança entre pagãos maias e católicos. Certas frações do Protestantismo americano foram dirigidas a um ponto de paranóia e resistência armada (mas inclusive os paranóicos têm algum inimigo real); enquanto a espiritualidade nativa-americana experimenta um pequeno milagroso revival – não um traje de fantasma manifestando-se nessa época, senão uma razoável e profunda postura contra a hegemonia da monocultura do capital.

O Dalai Lama algumas vezes aparece como um dos “lideres mundiais” capazes de dizer verdades tanto sobre os remanescentes da opressão Comunista como sobre a desumanidade capitalista; um “Tibet Livre” pode prover um foco para um bloco “inter-fé” de pequenas nações e grupos religiosos aliados contra o transcendente darwinismo social de consenso. O Xamanismo Ártico pode reemergir como uma ideologia pela autodeterminação de certas novas repúblicas Siberianas – e algumas novas Religiões (como o Neo-Paganismo Ocidental ou os cultos psicodélicos) que também pertencem por definição ou por defeito ao pólo de oposição.

No Islamismo tem-se visto a si mesmo como um inimigo do Cristianismo imperial e o imperialismo Europeu praticamente desde o momento do nascimento. Durante o século XX funcionou como uma terceira via tanto contra o Capitalismo como contra o Comunismo, e no contexto do novo mundo único constituiu por definição um dos poucos movimentos de massas que não podem englobar-se na unidade do consenso.

Desafortunadamente, a ponta de lança da resistência – “o fundamentalismo” - tende a reduzir a complexidade do Islã a uma ideologia artificialmente coerente - o “Islamismo” - a qual claramente falha ao falar ao desejo do humano normal da diferença e complexidade. O fundamentalismo já falhou em incumbir a si mesmo com as “liberdades empíricas” as quais devem constituir as demandas mínimas de uma nova resistência; por exemplo, sua critica à “usura” é obviamente uma resposta inadequada às maquinações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. As “portas da interpretação” da Shariah¹² devem ser reabertas – e não fechadas para sempre – e uma alternativa totalmente realizada ao Capitalismo deve emergir de dentro da tradição. De qualquer maneira qualquer um pode pensar que a Revolução Líbia de 1969 tinha ao menos a virtude de intentar fusionar o anarco-sindicalismo de 68 com o igualitarismo Neo-Sufi das Ordens do Norte da África, e criar um Islamismo revolucionário – algo similar se pode dizer do “socialismo Xiita” de Ali Shariati no Irã, o qual foi afastado pela uleocracia¹ ³ antes de poder concretizar um movimento coerente.

O fato é que o Islamismo não pode ser rechaçado como o monólito puritano atrasado nos meios capitalistas. Se uma genuína coalizão anti-Capitalista chegar a aparecer no mundo, não teria acontecido sem o Islamismo.

A meta de qualquer teoria capaz de qualquer tipo de investigação sobre Islamismo, eu creio, está agora em fomentar suas tradições igualitárias e radicais, em retirar seus modos autoritários e reacionários de discurso. Dentro do Islamismo persistem míticas figuras como o “Profeta Verde” e guia oculto dos místicos, al-Khezer, que pôde facilmente converter-se em um tipo de santo patrono da proteção do meio ambiente; enquanto a história oferece modelos com o grande Emir Sufí Alg Algerino, lutador da liberdade de Abdul Qadir, cujo ultimo ato (no exílio, em Damasco) foi proteger os cristãos sírios contra a intolerância das ulemas¹⁴. Visto de fora, neste Islamismo existe potencial de um movimento “interfé” concernente com os ideais de paz, tolerância e resistência à violência pós-racionalista, pós-secular do neoliberalismo e seus aliados. Com efeito, pois, o “potencial revolucionário” do Islamismo ainda não foi realizado – mas é real.

Desde que o Cristianismo foi a religião que “deu nascimento” (nos termos de Weber) ao Capitalismo, a sua posição em relação a presente apoteose do Capitalismo é obviamente mais problemática do que a do Islã. Por séculos o Cristianismo tratou de delinear-se e construir um tipo próprio de mundo imaginário auto-suficiente, no qual alguma aparência do social pudesse persistir (ainda que aos domingos) – mesmo quando mantinha a ilusão acolhedora de alguma relação com o poder. Como um aliado do Capital (com sua aparente indiferença benigna às hipóteses da fé) contra o “Comunismo sem Deus”, o Cristianismo pôde preservar a ilusão do poder – ao menos até cinco anos atrás. Agora o Capitalismo não mais necessita do Cristianismo e o apoio social de que desfrutava vai se evaporar logo. A Rainha da Inglaterra já pensou em renunciar de seu cargo enquanto líder da Igreja Anglicana – e parece improvável que seja substituída pelo executivo principal de algum vasto Zaibatsu¹⁵ internacional! Dinheiro é deus – Deus está morto, de fato; o Capitalismo realizou uma paródia secreta do ideal Iluminista. Mas Jesus é um deus que morre e ressuscita – alguém diria que ele atravessou tudo isso antes. Mesmo Nietzsche assinou sua última carta “insana” como “Dionísio e o Crucificado”; no final essa é talvez a única religião que pode “superar” a religião. Dentro do Cristianismo aparecem um grande número de tendências (ou persistem desde o século XVII, como os quakers¹⁶) buscando reviver esse messias radical que limpou o Templo e prometeu o Reino aos pobres. Na América, por exemplo, pareceria impossível imaginar um movimento de massas realmente efetivo contra o Capital (um tipo de “populismo progressivo”) sem a participação das Igrejas. De novo a tarefa teórica começa a esclarecer-se; a necessidade não propõe algum tipo vulgar de “entrismo” no Cristianismo organizado para radicalizá-lo por uma conspiração vinda de dentro. O melhor seria encorajar o sincero e generalizado potencial para o radicalismo Cristão intrínseco como um honesto crente (apesar de tudo os existencialistas tem fé!) ou como um honesto simpatizante de fora.

Para testar esta teorização pegue um exemplo – digamos a Irlanda (de onde estou escrevendo isso). Dado que o os “Problemas” da Irlanda surgem majoritariamente do sectarismo, obviamente que se tomará uma postura anticlerical; de fato, o ateísmo deveria ser ao menos emocionalmente apropriado. Mas a ambigüidade inerente da religião na história Irlandesa deve ser lembrada: - Houve momentos quando laicos e padres Católicos apoiaram a resistência ou a revolução, & houve momentos quando laicos e sacerdotes Protestantes apoiaram a resistência ou a revolução. As hierarquias das igrejas geralmente demonstraram serem reacionárias – mas hierarquia não é o mesmo que religião. No lado Protestante temos Wolfe Tone & os Irlandeses Unidos - um movimento revolucionário “entre-crenças”. Mesmo hoje, tais possibilidades não estão mortas na Irlanda do Norte; o anti-sectarismo não é apenas um ideal socialista mas também um ideal Cristão. No lado Católico... anos atrás conheci um padre radical num festival pagão nas Ilhas Aran, um amigo de Ivan Illich¹⁷. Quando perguntei “Qual é exatamente sua relação com Roma?” respondeu-me, “Roma? Roma é o inimigo”. Roma perdeu sua influência na Irlanda nos últimos anos, derrubada pela revolta anti-puritana e pelo escândalo interno. Seria incorreto dizer que o poder da Igreja passou para o Estado, a não ser que também acrescentemos que o poder do Governo passou para a Europa, e poder da Europa passou para o capital internacional. O significado do Catolicismo na Irlanda está pronto para ser compreendido. Nos próximos anos poderemos ver tanto do exterior quanto do interior da Igreja um tipo de revival da “Cristandade Celta” – devota da resistência contra a contaminação do meio-ambiente, tanto físico como imaginário, e assim comprometida com a luta anti-capitalista. De qualquer modo, essa tentativa incluirá ou ao menos influenciará também o Protestantismo. Tal movimento de amplas bases pode facilmente encontrar sua expressão política natural no socialismo ou inclusive no anarco-sindicalismo, e serviria uma função particularmente útil como uma força contra o sectarismo & as regras das classes intelectuais. Assim, até na Irlanda a religião pode ter um futuro revolucionário.

Espero que estas idéias encontrem muito pouca aceitação dentro do tradicional anarquismo ateísta ou dos restos do “materialismo dialético”. O radicalismo Iluminista recusou-se durante muito tempo a reconhecer qualquer raiz que não seja remota no radicalismo religioso. Como resultado, a Revolução lança o bebê (consciência não ordinária) à banheira da Inquisição ou à repressão puritana. Apesar de Sorel¹⁸ insistir que a revolução necessita de um “mito”, ela prefere reduzir tudo à razão pura. Mas o anarquismo e o comunismo espiritual (como a religião em si mesma) não sumiram. De fato, convertendo-se em anti-Religião, o radicalismo recorre a um tipo de misticismo próprio, completo com o ritual, o simbolismo e a moralidade. Os comentários de Bakunin a respeito de Deus - de que se ele existisse teríamos que matá-lo – poderiam depois de tudo passar como pura ortodoxia dentro do Zen-Budismo! O movimento psicodélico, que oferece um tipo de verificação “científica” (ou ao menos experimental) da consciência não-ordinária, aponta para um grau de reaproximação entre a espiritualidade e as políticas radicais – e a trajetória deste movimento pode ter apenas começado. Se a religião “sempre” atuou escravizando a mente ou reproduzindo a ideologia da classe dominante, ela também “sempre” envolveu um tipo de entheogenesis (nascimento do deus interior) ou liberação da consciência; uma forma de proposta utópica ou promessa do “céu na terra”; e uma forma de ação militante e positiva pela “justiça social” como plano de Deus para a criação. O Xamanismo é uma forma de “religião” que (como mostrou Clastres) efetivamente institucionaliza a espiritualidade contra o surgimento da hierarquia e da separação – e todas as religiões possuem ao menos um traço xamânico.

que colaboraram com o anarquismo na revolução de 1911. O Judaísmo produziu o “anarco-sionismo” de Martin Buber e Gershlm Scholem (profundamente influenciado por Gustav Laundauer¹⁹ Toda religião pode apontar para uma tradição radical de algum tipo. O Taoísmo uma vez produziu os Turbantes Amarelos – ou as Tongs²⁰ e outros anarquistas de 1919), os quais encontraram sua mais eloqüente e paradoxal voz em Walter Benjamin²¹. O Hinduísmo deu lugar ao ultra-radical Partido Terrorista Bengali – e também a M. Gandhi, o único teórico com êxito da revolução não-violenta do mundo moderno. Obviamente o anarquismo e o comunismo nunca estarão de acordo com a religião nas questões de autoridade e propriedade; e talvez se possa pensar que “depois da Revolução” tais questões possam permanecer ainda sem se resolver. Mas parece claro que sem a religião não haverá uma revolução radical; a Velha Esquerda e a (velha) Nova Esquerda dificilmente poderão realizá-la sozinhas. A alternativa de uma aliança agora é como observar como a Reação restringe a força da religião e lança uma nova revolução sem nós. Gostando ou não, necessita-se de uma espécie de estratégia preventiva. A resistência requer um vocabulário no qual nossa causa comum possa ser discutida; e por isso estas propostas superficiais.

Mesmo assumindo que poderíamos classificar tudo acima com a rubrica de sentimentos admiráveis, ainda estaríamos longe de qualquer programa óbvio de ação. A religião não vai salvar-nos nesse sentido (talvez o contrário seja o correto!) – de qualquer maneira a religião enfrenta a mesma perplexidade que qualquer outra forma de “terceira posição”, incluindo todas as formas de antiautoritarismo e anti-Capitalismo radical. A nova totalidade e seus meios surgem tão penetrantes, como que para condenar todos programas de conteúdo revolucionário, a partir do momento em que qualquer “mensagem” está igualmente sujeita à subordinação no “meio” que o mesmo Capital. É claro que a situação é desesperançosa – mas apenas a estupidez tomaria isso como razão para o desespero ou como para o terminal aborrecimento da derrota. Esperança contra esperança – a esperança revolucionária de Bloch²² – pertence a uma “utopia” que nunca está totalmente ausente, mesmo quando parece menos presente; e pertence também a uma esfera religiosa em que a desesperança é o último pecado contra o sagrado espírito: - a última traição da divindade interior – o fracasso em converter-se em humano. O “dever Kármico” no sentido de Bhagavad Gita²³ – ou no sentido da “tarefa revolucionária” – não é algo imposto pela natureza, como a gravidade, ou a morte. É um presente livre do espírito – pode-se aceitá-lo ou recusá-lo - e ambas posições são perigosas. Recusar é correr o risco de morrer sem haver vivido. Aceitar é uma possibilidade mais perigosa, mas muito mais interessante. Uma versão da Aposta de Pascal²⁴ – não pela imortalidade da alma dessa vez, mas simplesmente por sua existência plena.

Usando a metáfora religiosa (que tentamos evitar ao máximo) o milênio começou cinco anos antes do final do século, quando o Mundo Único veio à luz e baniu toda dualidade. Contudo, visto da perspectiva Judaico-Cristã-Islâmica este é o falso milênio do “ Anti-Cristo”; o qual acaba por não ser uma “persona” (exceto talvez no mundo dos Arquétipos), mas sim uma entidade impessoal, uma força contra naturam – entropia disfarçada de vida. Nesta visão o reino da iniqüidade deve e será desafiado no verdadeiro milênio, o advento do messias. Mas o messias tampouco é uma só pessoa no mundo - é antes uma coletividade na qual cada indivíduo é realizado e desse modo (de novo metaforicamente ou imaginariamente) imortalizado. O “povo-como-messias” não entra na uniformidade homogênea nem na infernal separação do Capitalismo entrópico, mas na diferença e na presença da revolução – a luta, a “guerra-santa”. Apenas com estas bases podemos começar a trabalhar numa teoria de reconciliação entre as forças positivas da religião e a causa da resistência. O que oferecemos aqui é simplesmente o princípio do princípio.

Dublin, 01 de Setembro de 1996.


Este texto foi traduzido por Roberto B. (rsbortolon@yahoo.com.br) e Daya (ecodaya@yahoo.com.br).


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NOTAS

1. N. do T. O potlatch é uma cerimônia praticada entre diferentes grupos índigenas da América do Norte, como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl. Consiste num evento sagrado de homenagem, geralmente envolvendo um banquete de carne de foca ou salmão, seguido por uma renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado – bens que devem ser entregues a parentes e amigos. A própria palavra potlatch significa dar, caracterizando o ritual como de oferta de bens e de redistribuição da riqueza. A expectativa do homenageado é receber presentes também daqueles para os quais deu seus bens, quando for a hora do potlatch destes.

2. N. do T. Mammon é o ídolo pagão citado no Novo Testamento como um falso deus do culto à riqueza, à avareza e ao ganho material, é também considerado a personificação de um dos sete pecados capitais, a "ganância".

3. N. do T. Agiotas legalizados ou reconhecidos pelo governantes de um estado ou clero de uma instituição religiosa. Atualmente papel desempenhado por bancos e casas de crédito.

4. N. do T. Max Weber (nascido em1864 — falecido em 1920) foi um intelectual alemão, jurista, economista e considerado um dos fundadores da Sociologia. Em um dos seus trabalhos Weber demonstra como a ética religiosa protestante forneceu os fundamentos para a doutrina capitalista.

5. N. do T. Ranters (literalmente Faladores), era a denominação dada a uma seita inglesa do século XVII, considerada radical e herética por pregar a idéia de que Deus está essencialmente em todas as criaturas. Crença que levou seus membros a negar a autoridade da igreja, das escrituras, do clero e seus serviços, conclamando a todos a ouvirem seu "Jesus interior".

6. N. do T. Diggers (literalmente Escavadores), foi um movimento de trabalhadores rurais pobres, liderado por Gerrard Winstanley entre os anos de 1649 e 1650 na Inglaterra, que pretendia substituir a ordem feudal recentemente derrotada na Guerra civil inglesa por uma sociedade igualitária, agrária e cristã anticlerical.

7. N. do T. Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (nascido em 1772 — falecido em 1801), Freiherr (Barão) von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão de finais do século XVIII e o criador da flor azul, um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico.

8. N. do T. William Blake (nascido em 1757 – falecido em 1827) foi um poeta inglês, pintor e tipografo. Amplamente não reconhecido durante seu tempo de vida, o trabalho de Blake é hoje considerado seminal e significante tanto para a história da poesia quanto das artes visuais.

9. N. do T. Jules Régis Debray (nascido em 1940) é um filósofo, jornalista e professor francês. Foi seguidor do marxista Louis Althusser. Amigo de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, nos anos 1960 acompanhou o Che na guerrilha, especialmente na Bolívia, onde foi preso em 1967. Nesse mesmo ano escreveu sua primeira obra, "A Revolução na revolução". Pertenceu ao Partido Socialista Francês , do qual se distanciou por diferenças ideológicas com o ex-presidente François Mitterrand. Atualmente é mais conhecido como o criador da mediologia - o estudo crítico dos signos e de sua difusão na sociedade.

10. N. do T. Pierre Clastres (nascido em 1934 - falecido em 1977) fui um grande antropólogo e etnólogo de aspirações libertárias. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crônica dos índios Guayaki 1972, A sociedade contra o Estado 1974, e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani 1974. Sua morte prematura, em um acidente de carro interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política 1980.

11. N. do T. Konstantínos Kaváfis, no alfabeto grego: Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης, (nascido em 1863 — falecido em 1933) foi um poeta grego. Por vezes, seu nome aparece creditado como Constantine P. Cavafy. Nascido numa familía grega radicada no Egito e tendo vivido dos sete aos dezenove anos de idade em Liverpool, Kaváfis era um cético e questionava a Cristandade, o patriotismo e a heterossexualidade enquanto normalidade humana. Publicou 154 poemas e cerca de mais uma dúzia permaneceram incompletos ou no esboço.

12. N. do T. A Sharía ou shariah (em árabe شَرِيعَة šarīʿa, "caminho" ou "trilha"), chamada pela mídia ocidental de lei mulçumana los (e não lei islâmica, já que poderia se dizer que na realidade está inspirada no Islã, mas não é irrefutável como o Corão), é o corpo de Direito Islâmico. Constitui um código detalhado de conduta, no qual se incluem também as normas relacionadas às formas de culto e os critérios da moral e da vida, coisas permitidas ou proibidas,. e as regras que separam o bem do mal. É adotada pela maioria dos mulçumanos, em maior ou menor grau, como uma questão de consciência pessoal. Mas também pode ser instituída como lei por certos estados e também por tribunais que podem velar pelo seu cumprimento. Muitos paises islâmicos adotaram elementos da shariah em seus estatutos como por exemplo heresias e os testamentos para a regulação de atividades bancárias e contratos.

13. N. do T. Uleocracia é o nome dado a um regime teocratico regido por estudiosos ou sábios da religião islâmica, as ulemas. Os governos dos Talibans no Afeganistão e dos Aiatolás no Irã podem ser considerados bons exemplos de Uleocracia.

14. N. do T. Ulema (em língua árabe, علماء, Ulamā, singular Ālim) é o nome que dado aos estudiosos e doutores da "ciência religiosa" islâmica e da shariah ou lei islâmica (ulùm al-diniyya). Literalmente, a palavra significa sábio, doutor. A ulema enquanto instituição é mais poderosa no islamismo xiita (shi'a islam), onde o seu papel é institucionalizado, porém são subordinados aos herdeiros de Ali e à hierarquia dos mulás.

15. N. do T. No Japão o termo zaibatsu é a definição de um conglomerado de empresas que estão presentes em quase todos os setores da economia. Os executivos das empresas que tomam parte neste conglomerado buscam adquirir quantidades expressivas de ações de outras empresas deste mesmo grupo, em uma forma de acionismo cruzado.

16. N. do T. Quaker é o nome dado a um membro de um grupo religioso de tradição protestante, chamado Sociedade Religiosa dos Amigos (Religious Society of Friends). Criada em 1652, pelo inglês George Fox, a Sociedade dos Amigos reagiu contra os abusos da Igreja Anglicana, colocando-se sob a inspiração directa do Espírito Santo. Os membros desta sociedade, ridicularizados com o nome de quakers, ou tremedores, rejeitam qualquer organização clerical, para viver no recolhimento, na pureza moral e na prática activa do pacifismo, da solidariedade e da filantropia. Perseguídos na Inglaterra por Carlos II, os quakers emigraram em massa para a América, onde, em 1681, criaram sob a égide de William Penn a colónia da Pensilvânia.

17. N. do T. Ivan Illich (nascido em 1926 - falecido em 2002) foi um filosofo anarquista nascido na Áustria, foi padre na juventude, mas rompeu com a igreja se tornando um de seus maiores críticos. Foi também autor de uma série de críticas muito bem fundamentadas às instituições centrais da cultura ocidental contemporânea tais como a educação, o trabalho e o desenvolvimento econômico.

18. N. do T. Georges Eugène Sorel (nascido em 1847 – falecido em 1922) engenheiro formado pela École Polytechnique e teórico do sindicalismo revolucionário, muito popular na França, na Itália e nos Estados Unidos. Mas sua influência começou a decair depois de 1920. É um autor controverso quanto a linha política a qual adere. Suas idéias foram aceitas tanto pelo fascismo italiano quanto pela esquerda revolucionária deste país, influenciando consideravelmente o pensamento anarco-sindicalista.

19. N. do T. As tong são formas muito antigas de sociedades secretas chinesas, criadas para apoio mútuo e proteção, no passado eram horizontais e descentralizadas, fatores que dificultavam seu combate e aumentavam seu poder. As tong estavam envolvidas numa série de ações que poderiam ser consideradas pela perspectiva estatal como criminosas. Ao longo da história as tong já estiveram por trás do assassinato de déspotas imperadores chineses, pelo comércio do ópio e haxixe na China, chegando até os dias de hoje tomando parte também em esquemas de imigração ilegal de orientais para as Américas.

20. N. do T. Gustav Landauer (nascido em 1870 - falecido em 1919) foi um crítico feroz à burocracia e um ardente defesor do socialismo libertário. Atacou o marxismo autoritário que considerava por si só opressivo e obstáculo ao desenvolvimento e à libertação humana. Amigo pessoal de Martin Buber, propagandeador das práticas anarco-socialistas no Movimento Sionista e dos pioneiros do kibbutz. Dotado de uma preocupação especial com a dimensão espiritual do anarquismo, ele é lembrado por suas convicções de que o Estado é uma forma de relacionamento institucionalizado. Laundauer acreditava na não necessidade de uma revolução para superar o Estado, mas sim na possibilidade de uma mudança da natureza e da qualidade dos relacionamentos.

21. N. do T. Walter Benjamin (nascido em 1892 — falecido em 1940) foi um crítico literário e ensaísta alemão cuja obra tratou de temas referentes a transformação social a partir de uma perspectiva marxista. Foi associado à Escola de Frankfurt e publicou uma série de obras de profunda reflexão.Com a ascenção do nazismo tornou-se um refugiado e diante da perspectiva de ser capturado escolheu o suicídio.

22. N. do T. Ernst Bloch (nascido em 1885 — falecido em 1977) foi um filósofo alemão. A principal temática que perpassa a sua obra é a da Utopia que concebia como uma força revolucionária. Suas principais obras foram: Princípio Esperança, O Espírito da Utopia, Sujeito e Objeto em Hegel, entre outras. Exerceu forte influência sobre Erich Fromm, e diversos outros pensadores e se tornou referência obrigatória para todos que estudam o tema da utopia.

23. N. do T. A Bhagavad Gita (A Canção do Senhor) é um texto religioso Hindu. Faz parte do épico Mahabharata, embora seja de composição mais recente que o todo deste livro. Na versão que o inclui, o Mahabharata é datado no Século IV a.C. O texto, escrito em sânscrito, relata o diálogo de Krishna (uma das encarnações de Vishnu) com Arjuna (seu discípulo guerreiro) em pleno campo de batalha. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre seu dever, e recebe iluminação diretamente de Krishna, que o instrui na ciência da auto-realização.

24. N. do T. Blaise Pascal (nascido em 1623 - falecido em 1662) foi um filósofo, físico e matemático francês, que como filósofo e místico criou uma das afirmações mais pronunciadas pela humanidade nos séculos posteriores, O coração tem razões que a própria razão desconhece, síntese de sua doutrina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção.

domingo, 29 de março de 2009

Religião e Revolução I

"Obviously anarchism & communism will never come to terms with religion on questions of authority & property; & perhaps one might say that "after the Revolution" such questions will remain to be resolved. But it seems clear that without religion there will be no radical revolution."


"Obviamente anarquismo & comunismo nunca chegarão em termos com a religião em questões de autoridade e propriedade; & talvez alguém pode dizer que 'após a revolução' essas questões vão continuar lá para serem resolvidas. Mas parece claro que sem religião não haverá revolução radical."

Hakim Bey

segunda-feira, 16 de março de 2009

auto-gestão vs gestão clássica em Centros Acadêmicos: Uma nova aproximação para um debate mais profundo

para discutirmos a melhor forma de organizar um CA, devemos primeiro definir exatamente pra que ele deve servir, qual seu objetivo. assim podemos trabalhar as melhores ferramentas organizacionais possíveis para atingir tal objetivo.

pois bem. pra que serve um CA?

serve para representar os estudantes perante a academia, ok. para defender seus direitos, beleza. também para organizar eventos de interesse dos estudantes (festas, palestras, encontros, grupos de estudo), perfeito.

algo mais? creio que esses três pontos resumem tudo, por enquanto. se alguém lembrar outra coisa, grite.

então vamos detalhar cada ponto, eviscerá-los para chegar a seus segredos mais recônditos.

- representar os estudantes perante a academia - hmmm... nada muito complexo, mas ao mesmo tempo nada muito divertido. alguém tem que ser escalado para participar de reuniões de departamento e manter os estudantes atualizados sobre o que acontece por lá. tem que ser alguém de confiança, especialmente em questões de pontualidade, e com saco para ficar lá no blá blá blá...

- defender os direitos dos estudantes do curso - eis algo Deveras Complexo. quais são os direitos do estudante? quem tem o direito de decidir isso? os estudantes ou um grupo os representando? até que ponto a massa dos estudantes estão realmente conscientes do que acontece? há dois moralismos contraditórios jogando aqui, e isso é sempre bastante complicado. tema para muito pano pra manga, que será abordado mais pra frente neste texto.

porém ainda há outra coisa a ser abordada neste ponto: qual a metodologia a ser adotada na tal "defesa dos direitos"? fazer piquete ou conversar? e novamente: quem tem o direito de decidir sobre isso??? mais coisa a se discutir e se esbofetear...

- organizar eventos de interesse para os estudantes do curso - "hah! Fácil!", o ignóbil sorri frente a isto. mas não é tão fácil quanto parece. uma coisa é "organizar" uma festa em república onde as pessoas vão passar o chapéu pra comprar cerveja, na hora. outra coisa é organizar um evento da envergadura de um curso de algumas centenas de estudantes. exige coordenação, responsabilidade, comunicação, distribuição de tarefas e um pouco de tirania. senão não anda.

bem... o primeiro passo no sentido de um aprofundamento do debate foi dado. agora vamos examinar cada um dos lados da questão (auto-gestão versus gestão clássica) separadamente, e depois compará-los.

Gestão Clássica

No modelo clássico de gestão de Centro Acadêmico se inscrevem chapas, acontece uma eleição, e a (teoricamente) com mais votos vence. Ótimo.

A parte do teoricamente se deve à incidência relativamente grande de fraude eleitoral. Mas isso geralmente acontece apenas quando há uma chapa hegemônica que está utilizando o CA para fins pessoais. Não é algo assim TÃO comum, apesar de ser muito mais comum do que o saudável para um Movimento Estudantil com pretensões de seriedade.

Idealmente as pessoas se agrupariam de acordo com suas respectivas ideologias políticas para formar as chapas que disputarão as eleições. Na prática isso acontece em alguns momentos, mas em outros se montam as chapas por coleguismo ou por interesses pessoais.

O mesmo ocorre nas eleições. Se vota nos amigos, não nos programas das chapas. Exceto em pessoas-exceção ou em momentos-exceção.

Isso faz com que chapas realmente ativas e engajadas sejam minoria entre as eleitas. Porém essa minoridade ainda é de um percentual relevante. Mesmo minoria, existem MUITAS gestões que conseguiram fazer excelentes trabalhos, na questão política.

A grande vantagem da Gestão Clássica é a questão organizacional. Por serem um grupo já unificado, eleitos pela maioria dos votos, a chapa eleita tem uma legitimidade e uma responsabilidade grandes perante os acadêmicos. Fica muito mais simples organizar essa meia dúzia de pessoas para fazer as coisas. As engrenagens giram muito mais facilmente, fato.

Uma gestão empossada por eleição tem muito mais facilidade de trabalho (respeitabilidade, legitimidade) que uma auto-gestão. Por que isso? Simples. Porque você vai chegar numa reunião de Movimento Estudantil, ou com algum representante de departamento ou reitoria, e a primeira pergunta será: “quem te deu o poder para estar aqui? Com que direito você fala em representação aos alunos do teu curso?”. Não que essa pergunta seja necessariamente proferida, porém ela está sempre tácita em qualquer relação de poder. E, politicamente falando, para conseguirmos qualquer coisa dentro da universidade, a balança da relação de poder deve estar pendendo a nosso favor.